v i n t e e u m

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Vigésimo sexto

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Vigésimo sexto.

Baseando-me no número de vezes em que eu soprei a fumaça de maneira frenética em direção aos pássaros que sobrevoam o céu mesclado de tons azulados da cidade de Belvidere, eu considero a quantidade de nicotina que inalei de cada um dos cigarros que estiveram em meus lábios em um curto período de tempo e penso nas partes de meus pulmões que ainda permanecem intocadas ou mais ilesas do que outras.

Talvez nenhuma.

Mas essa reflexão torna-se insignificante e totalmente em vão quando dou-me conta de que esses foram somente mais três entre os milhares de cigarros que eu já fumei desde que descobri o meu fascínio.

— Você omitiu o seu vício em nicotina ou eu estava distraída com o aplicativo de jogos on-line quando você confessou isso ao Group? — Kim Kettner, a viciada em apostas de cassinos e torneios de pôquer, tirou-me de meus devaneios quando se sentou ao meu lado.

Eu apertei a ponta do cigarro com os dedos para que as cinzas caíssem ao meu lado, na pequena poça de água que se formou com a tempestade do dia de ação de graças.

— Provavelmente a segunda opção.

Duvidosa, Kim insistiu: — Acredito que não.

Então eu virei-me para ela, encarando a heterocromia nas cores distintas de seus olhos com o semblante sério e inexpressivo.

— Kim, a única coisa que eu não confessei ao grupo de apoio e que você em específico deveria saber, é que eu não suporto pessoas que são viciadas em bisbilhotar a vida alheia.

E como se ela soubesse que essa seria a única reação que eu não esperava, Kim sorriu.

— O que é lamentável, porque eu sou viciada justamente em desafiar pessoas como você, que empoem obstáculos para dificultar o meu processo de investigação. Então, com pesar, mas nem tanto, eu te informo que todo esse seu mistério só está me instigando ainda mais.

Eu balanço a cabeça lentamente, inclinando-me até ela com o cigarro ainda pendendo em meus lábios antes de inspirar a nicotina uma última vez para por fim deixar que a fumaça escape pelo canto de minha boca.

— O seu esforço é patético, Kim.

Nesse momento, eu a calo. Mas segundos depois, quando eu ponho-me de pé, o tom de voz audacioso de Kim Ketter preenche meus ouvidos e me faz parar no mesmo lugar: — Eu te desafio a ficar, Nolan D.Kresth.

(...)

Encarando a entrada do Belvidere Support Group pela quase milésima vez desde que eu me mudei para a sede do condado de boone, em Illinois, chego a conclusão de que esse é oficialmente o primeiro dia em que eu me encontro ansioso e até mesmo animado para participar da seção. E embora eu não queira admitir isso em voz alta, fora Kim quem me fizera reconsiderar e mudar a minha opinião negativa sobre o Group, obrigando-me a lembrar dos propósitos que eu havia repentinamente esquecido e que me trouxeram até aqui quando eu enfim decidi e me dispus a procurar por ajuda independentemente; mesmo que eu tenha burlado as regras que impus a mim mesmo de comparecer em todas as seções e evitar o álcool quando eu faltei a algumas das seções justamente para beber.

Ao entrar, eu observo as pessoas à minha volta e me esforço para acreditar que de alguma forma eu pertenço a esse lugar, mesmo que o vazio em meu peito me lembre a cada segundo de todos os dias durante esses três meses que tudo que eu mais quero está em Nova York.

— Bem-vindos a mais um dia, Belvidere's — diz Calvern, o orientador de quarenta e seis anos responsável pelas seções, exibindo seus dentes amarelados com um sorriso largo. — Espero que vocês não tenham tido recaídas.

— Eu também esperava, Calvern, mas, como você sabe ou apenas finge saber, é difícil resistir aos analgésicos quando a dor torna-se insuportável. — Amber Gaskin se manifesta, parecendo derrotada.

Aos dezesseis anos, ela foi transferida para o lar adotivo de Belvidere quando as freiras souberam de sua farmacodependência e a descartaram por 'falta de condições' sem ao menos terem tentado ajudá-la, como se de uma  hora pra outra Amber não fizesse mais parte da família que pensara ter desde a sua infância; o que me deixara levemente irritado.

Calvern enlaça suas mãos as dela, tentando reconforta-la quando as lágrimas caem como cascatas de seus olhos.

— Onde você os conseguiu, Amber? — ele questiona, fazendo-a erguer o olhar até o seu semblante preocupado e nitidamente decepcionado.

Ela dá de ombros.

— Com um farmacêutico ilegal.

Sem hesitar, o barbudo balança a cabeça de um lado para o outro e solta um longo suspiro.

— E quantos comprimidos você ingeriu?

Amber prende o lábio inferior entre os dentes, parecendo apreensiva.

— Doze, eu acho. Não me lembro ao certo. Mas no máximo quinze. — Ela diz, e então completa, eufórica: — Ah, e eu joguei os comprimidos que sobraram no vaso sanitário.

Calvern tenta disfarçar a sua frustração com um sorriso contido, mas eu ainda a vejo.

— Tudo bem, querida. Tudo bem. Acontece. Mas todos nós estamos contentes com o seu pequeno avanço. Não é mesmo, pessoal?

Então, eu e todos os viciados que constituem o Group assentimos, exclamando em alto e bom som um 'claro, Calvern' em uníssono. E, quase que de imediato, Amber curva os lábios em um grande sorriso e o rubor saudável retorna as maçãs albinas de seu rosto.

— Continue se esforçando, Amber.

Depois de algum tempo, meus olhos desviam da caricatura do Elvis Presley que fora grafitada em uma das paredes do galpão abandonado onde as seções acontecem e eu finalmente encaro Calvern quando ele chama pelo meu nome mais uma vez.

— Nolan, está pronto para falar sobre a história por trás dos seus vícios?

Eu fixo meus olhos em cada um dos viciados que me observam com curiosidade e pondero sobre a sua pergunta, sentindo-me estranhamente confortável.

— Acho que sim.

— Muito bem, estaremos aqui para escuta-lô quando você quiser se abrir conosco.

Descarto o leve receio que sinto quando repenso nas palavras que estou prestes a dizer e inspiro fundo, tentando não dar para trás; o que eu fiz em todas as outras seções.

— Eu perdi o meu irmão aos dezessete anos, mas o álcool o manteve vivo até que a ilusão que criei em minha mente se foi com ele. — Eu pauso, esforçando-me para ignorar as reações audíveis que tocam os meus ouvidos. — Então eu conheci a nicotina, e ela anestesiou a dor que me corroera por dentro, mesmo que estivesse me matando aos poucos, ainda mais que a sua ausência. E foram os meus vícios que me salvaram e me fizeram acreditar em uma possível e imprescindível redenção.

D.KRESTHWhere stories live. Discover now