Quinze

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Melissa

Depois de várias tentativas consigo finalmente abrir os olhos para me deparar com a semi-escuridão do quarto. Poucos raios de luz entram por entre uma fresta da cortina mal fechada da janela. Viro de lado e encontro Gabriel ocupando mais da metade da cama, ele dorme esparramado de bruços, abraçado ao travesseiro. É até surpreendente que não tenha me derrubado da cama como fazia quando éramos crianças. Levanto com bastante cuidado para não despertá-lo, mas com a sorte que tenho, acabo com o pé enrolado no lençol e tenho um maravilhoso encontro com o chão. Agora não só a cabeça dói como também todo o meu corpo e até minha alma. Até consigo ver as estrelas  cintilando ao fechar os olhos, meu estômago embrulha e para completar a tragédia, o líquido amargo e fétido sobe de uma vez por minha garganta, derramando-se no que era um piso imaculadamente branco e limpo.

Eu sou uma negação mesmo. Não costumo beber e quando o faço, acordo no dia seguinte em um quarto diferente do meu e ainda vomitando para fechar o circo de horrores com grande estilo. Sou uma piada, essa é bem a verdade.

"Sempre fazendo bagunça logo cedo, Melissa." Gabriel me segura pela cintura, levantando-me do chão e continuo de cabeça baixa para que não veja a Melissa-Espantalho que me tornei. "Ainda está enjoada?" Nego com um menear de cabeça. "Tonta?"

"Desde o dia em que me envolvi com um covarde desgraçado, que agora está fazendo da minha vida um inferno e eu não consigo fazer nada além de sentir medo e chorar." Aperto minhas mãos em punho e algumas lágrimas caem sem permissão, mas as enxugo rapidamente, pois estou cansada de secar meus ductos lacrimais por quem não merece.

"Vai tomar um banho enquanto eu limpo essa bagunça." Gabriel ordena em um tom de voz que não admite ser contestado e não serei eu a contrariá-lo, já que uma vez também limpei o vômito dele do chão da cozinha do tio Klaus. Foi a primeira vez que Gabriel bebeu três taças de vinho na vida e não aguentou. Sobrou para euzinha aqui lavar a cozinha toda para aprender a não acobertar mais o melhor amigo de 16 anos nas suas loucuras, papai ainda me deixou um mês sem mesada e para piorar tio Klaus fez o mesmo com Gabriel, sorte a nossa que meu amigo sempre foi bom em economizar e tinha um dinheiro reserva para nos alimentar durante os intervalos das aulas.

Arrasto-me até o banheiro e após retirar a roupa, deixo a água morna cair sobre minha cabeça como se fosse uma terapia relaxante. Lavo os cabelos com shampoo e condicionar, tomando o cuidado de desembaraçá-los com os dedos. Não sei quanto tempo demoro, mas quando termino o banho, não sinto mais dor a não ser um desconforto na boca. Visto um roupão branco e enrolo uma toalha nos cabelos para absorver a água. Ao me olhar no espelho, suspiro ao ver o estrago em meu rosto, além do lábio inferior inchado e com um leve corte, tem um hematoma roxo na minha bochecha direita. Passo os dedos nas marcas das agressões causadas por aquele bastardo e sinto um grande ódio, uma enorme sede por justiça. Se eu pudesse, eliminaria da face da terra os malditos parasitas que covardemente agridem os mais fracos.

Vasculho as gavetas em busca de uma nova escova de dentes, mas não encontro nenhuma. Só tem uma verde junto ao tubo de creme dental e não ligo de usá-la porque não vou ficar com bafo de vômito e que Gabriel não venha reclamar pois uma vez ele usou a minha escova rosa também. Tínhamos só seis anos e nenhuma cárie como acredito não termos agora. Bem que poderia ter maquiagens por aqui, nessas horas que uma melhor amiga ou amigo gay fazem falta.

Ao sair do banhe encontro o quarto totalmente limpo com cheirinho de eucalipto, a cama está perfeitamente arrumada e sobre ela encontro uma camiseta vermelha de Gabriel e a calça jeans, que usei na noite passada. Caminho até o pequeno closet e não me surpreendo ao encontrar algumas poucas peças de roupas do meu amigo. Ele é tão organizado que as cuecas estão perfeitamente arrumadas na primeira gaveta, conforme suas cores. Pego uma boxe preta e a visto sem qualquer cerimônia, não vou andar por aí sem calcinha ou com uma suja. Se ele achar ruim depois compro uma nova, ou não. Aproveito e uso o desodorante dele também para a conta ficar completa. Corro para me vestir no banheiro ao escutar a campainha e ao sair de lá ouço a voz irritada de tio Damon, misturando-se com a de meu pai, que o manda calar a boca. Desço os degraus da escada com cuidado e ganho a atenção dos três homens, que parecem ocupar todo o espaço da pequena sala bem decorada e que um dia ainda terei tempo de conhecer com bastante calma.

Série Corações Feridos: Não me esqueça (Vol. 4) ✔Onde as histórias ganham vida. Descobre agora