Dezessete

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Quando começo a reclamar dizendo que meus problemas são horríveis e não têm soluções, lembro-me de todos os pacientes que passam diariamente por esse hospital, principalmente, daqueles com os quais mantenho contato regularmente e conheço um pouco de suas histórias, como é o caso de Emma, uma jovem mulher de 35 anos, mãe de três filhos pequenos, que há sete meses vem lutando contra um dos grandes inimigo da atualidade. Ela já tinha passado por uma mastectomia dupla* e agora a cada dez dias faz a quimioterapia** para destruir as células cancerígenas remanescentes do procedimento cirúrgico, buscando assim reduzir o risco de uma recidiva. No caso de Emma, o doutor Carl administra combinações de cisplatina mais gemcitabina, já que o câncer foi descoberto em um estágio mais avançado depois de adiar por meses a ida ao médico, por acreditar que os nódulos nos seios, não eram nada sério, pois só doíam quando estava em seu ciclo menstrual. Foi em uma visita a um clínico geral após uma febre, que descobriu a doença.

A minha escolha de ser oncologista foi por causa de uma das mulheres mais especiais da minha vida. Mamãe Valerie morreu de câncer de mama em uma época,  na qual, o nome câncer era um verdadeiro tabu, na verdade, até hoje é. Muitas pessoas preferem usar a sigla CA como se isso fosse diminuir o impacto e a importância de se conhecer bem uma doença, que causa tanto medo por desafiar a inteligência humana. Graças à Deus os tempos mudaram e a ciência evoluiu, dando ao ser humano a chance de lutar contra uma doença na maioria das vezes, silenciosa. Quando minha menarca se iniciou eu não tinha nem 11 anos completos, por isso, devido a histórico de mamãe, vovó Lily realizou uma bateria de exames na época apenas por precaução e logo quando fiz 18 anos, passei pelo mesmo processo para descartar qualquer tipo de dúvida. Graças a Deus gozo de perfeita saúde e esse é mais um motivo para me dedicar tanto à minha profissão: amor ao que faço, gratidão em poder ajudar ao próximo e principalmente poder ver os sorrisos, mesmo cansados, nos rostos de meus pacientes.

"Seu lenço de hoje é lindo." Aperto a mão fria de Emma, que mesmo exausta, presenteia-me com um sorriso.

"Foi Paul quem me deu de presente." Suspiro por causa da troca de olhares cheio de amor e cumplicidade entre o casal. Paul tem 36 anos, alto, forte, cabelos escuros e olhos castanhos. As enfermeiras estão sempre suspirando ao vê-lo, mas ele só tem olhos para a esposa e está presente em todas as consultas, sessões de quimioterapia e vindas ao hospital. "Estou me sentindo Lex Luthor sem meus cabelos."

"Só que infinitamente mais bela." Paul beija a testa da esposa e volta a se sentar na cadeira ao lado do leito. Antes de voltar a atenção para um livro, entrega uma barra de chocolate para Emma. É a forma que ela encontrou de controlar um pouco os enjoos causados pelos remédios.

Despeço-me deles e vou até meu último paciente designado pela doutora Madeleine. Após verificar a medicação, troco algumas palavras com o mal-humorado do senhor Samuel, que não quer papo com ninguém, fala que médicos são inúteis e mais uma vez reclama da demora da quimioterapia. A filha me olha com um pedido mudo de desculpas e aperto seu ombro dizendo que está tudo bem.

Deixo a ala oncológica e me obrigo a ir até a sala da doutora Coração de Gelo, como ela ordenou que o fizesse após terminar as minhas visitas aos pacientes. Só espero que não seja para reclamar do meu trabalho como aquela azeda sempre faz. Bato em sua porta e espero a permissão para entrar em seu consultório. Os olhos castanhos me miram indiferentes quando me indicam uma cadeira para que eu me sente. Ela foi uma das poucas que não fez perguntas ou me olhou de forma indiscreta por causa do machucado em meus lábios. O hematoma no rosto consegui esconder com maquiagem, mas a boca machucada, não.

"Fiz algo errado, doutora? Nunca me chama quando não é para dar alguma bronca, mas vou logo avisando que seja o for, não fiz nada." Tiro uns pelinhos escuros da minha calça branca e levanto a cabeça quando ouço seu bufar de impaciência.

Série Corações Feridos: Não me esqueça (Vol. 4) ✔Where stories live. Discover now