60.

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(Ian)

Expirei, sentindo o poder dos motores fazer convalescer a carcaça do avião, que engasgou, acelerou e subiu, intenso e veloz. Meus olhos estavam presos em uma Kath sonolenta, ronronando contra meu ombro, aquecida e confortável. Podia sentir com leve angústia a essência de baunilha que emanava de seu cabelo úmido, ao par que de sua pele, morna e aveludada procedia uma fragrância suave de sabonete, a qual se miscigenava à camiseta de algodão.

Inspirei. Podia, por minha vontade, permanecer preso alí, a ela, àquele perfume delicado por todo sempre. Quando Kath adormecia, assim, calma e indefesa, eu sentia que pertencia a minha a responsabilidade de protegê-la de todo mal. Como se ela fosse minha, como se eu tivesse o direito, como se ela quase desejasse aquilo. E se eu fechasse os olhos, mesmo que por um minuto, haveria apenas nós dois.

— O que você acha? — A voz de Dorian me resgatou de meus devaneios. — O que acha que Rebeka não nos disse?

Ele havia tomado o avião conosco de volta a Los Angeles, sabendo que muito provavelmente, quer quer que tenha cometido o crime, o fez em nosso nome, por causa de nosso avô. Como chefe da Bratva, ele precisava ter as mãos naquilo antes que o pior viesse sob nós.

Engoli em seco, desviando meus olhos a ele, logo a minha frente. Sua expressão dura e fria era como uma muralha intransponível, mas eu conhecia Dorian. Seus longos dedos fechavam-se contra os braços da poltrona, enquanto seus olhos vazios se distanciavam à janela, vagos. A barba por fazer, a expressão cansada, os círculos escuros abaixo dos olhos. Ele estava no limite.

— Não sei, Dorian. — Admiti, acariciando o cabelo de Katherine. — Mas depois de tudo que nós dois passamos, acho que estamos prontos. Seja o que for.

Ele me lançou um olhar profundo e depois fechou os olhos, inteiramente quebrado, assim com eu.

— Ela me rejeitou, sabia? — Afirmou ele, cruzando os braços atrás da cabeça e desabando na poltrona, como quem está prestes a virar massinha de modelar. — E eu ainda não consigo admitir que perdi pra você, mais uma vez.

Havia algo de cômico, no entanto trágico em seu tom. Não pude negar o alivio que percorreu meu corpo, como uma onda de êxtase, mas tão pouco comemorei, visto que basicamente eu estava na mesma posição, apenas não tinha coragem o suficiente para dizer.

— Você não perdeu pra mim, cara, porque tampouco ela é minha. — Afirmei, lançando à Kath um olhar carinhoso. — Acho que ela nem me vê mais como um homem em potencial e, acredite, isso é mais humilhante que ser rejeitado.

Deixei um riso desesperado escapar, mas Dorian nada me disse.

— Sem ela, eu não sei como teria conseguido. — Garanti, com toda convicção. — Se um dia ela me der qualquer chance por sabe Deus que motivo, eu amaria por esta e por outras mil vidas.

Um silêncio ensurdecedor preencheu a cabine, enquanto uma a uma as memorias se aproximavam, dilacerantes, dolorosas. Pude sentir a mágoa precipitar em meu coração e logo escorrer e transbordar no peito, como se eu estivesse lá mais uma vez. Como se eu descobrisse mais uma vez.

— Eu sempre ensaiei o que dizer quando chegasse a hora de encarar você, Ianor. — Informou Dorian, encarando-me no mais profundo do espirito, como quem lança uma corda até o invisível e é magnetizado pelas estrelas. — Mas agora eu sei que nunca estaria pronto pra isso, não importa quanto tempo levasse.

Tudo que podia ouvi era o som de minha respiração, enquanto era consumido pela pontada aguda como uma adaga contra minhas costas, rasgando a pele e abrindo a ferida. A talha na carne passava a sangrar, escorrendo e respingando pela pele morna. Era como abrir um buraco usando dinamites, arrancando pedaços, libertando uma série de demônios indomáveis a luz do dia. E tudo que pude fazer foi trincar os dentes, respirar fundo e encará-lo.

— No dia do acidente dos nossos pais, foi você quem vi assim que acordei. Você estava lá, apertando minha mão, encarando o mar como se fosse capaz de vence-lo. — Adimitiu ele, encarando o teto, incapaz de me encarar. — E naquele momento, você se tornou meu herói. Você só tinha dez anos e eu achava que se você estivesse comigo, eu seria capaz de qualquer coisa.

Meus olhos arderam, marejando, mas a dor era muito mais densa que a raiva e tudo que pude fazer foi desviar os olhar até a janela, tirando-o de minha visão periférica. Por Deus, eu quis mais que tudo levantar e acertar outro soco no meio do nariz, mas me contive.

Eu lembrava exatamente daquele dia. Lembrava de Dorian ao seis, engasgado com água. Lembrava da correnteza enquanto eu tentava arrastá-lo até a praia. Lembrava do medo de estar sozinho, enquanto eu desesperadamente tentava acordá-lo. Lembro de seus olhos me encarando confusos ao acordar e do meu alívio em não perder-lo.

Lembro de não ter chorado quando a guarda costeira chegou, quando recebemos a notícia de que nossos pais haviam falecido no acidente. Lembro de segurar a mão de Dorian, encarando o nada, segurando as lágrimas, enquanto ele desava em desespero. Porque eu era o mais velho. Porque cuidar dele era agora meu papel.

— Eu sou fraco, Ianor. Tão fodidamente fraco. — Afirmou Dorian. — Eu me escondi na sua sombra a vida toda, como um verme faz. Sempre no segundo plano, sempre com suas sobras. Eu sempre me senti a metade de um homem quando comparado a você.

Sentimentos conflitantes de dor e angústia escapavam da caixa de pandora e se tornavam reais, como monstros, monstros prestes a me devorar por inteiro. Por fim, encarei-o, porque sabia aquele ser a única saída. Encará-lo de frente, aceitar cara a cara suas palavras, mesmo que aquilo me devastasse.

— Eu sei que você não pode me absolver. O que fiz com você é imperdoável, não porque você é meu irmão, mas porque você era tudo que eu tinha. Você é tudo que eu tenho.

Fechei os punhos, engasgado. Estávamos tão longe que eu mal podia imaginar um caminho de volta. Eu não podia ver-lo, ouvi-lo, mas eu o sentia, numa frequência baixa e pontual, mas eu o sentia. E reconhecia aquela sensação.

— Por que você está me dizendo isso agora, depois de tudo? — Indaguei.

— Porque essa pode ser minha ultima chance.

E nada além daquilo foi dito. Restavam apenas pensamentos embaralhados em nossas mentes confusas, vozes escaldantes que falavam todas de uma vez, transformando a mente em um caos inordenável, inabitável. Fluxos intensos jorrando de nossas cicatrizes mal curadas, ampliadas pelo desejo de dizer, sem saber muito bem o que. Permanecemos simplesmente perdidos em nossas abstrações, até o que avião finalmente chegou a Los Angeles, muitas horas de voo depois.

— Kath, voltamos. — Anunciei, despertando-a da noite de sono.

Seus olhos abriram-se lentamente para mim, revelando uma luz quente e cintilante.

Eu me apeguei aquela sensação, absorvendo o momento, a paz.

Encarei a cidade de cima. O céu escuro anunciava: vai chover.

Era um mau presságio.

A chuva viria sob nós. Um temporal, repleto de raios. E de dor.

Mr. Bratv Onde histórias criam vida. Descubra agora