57. Vai correr tudo bem

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A noite finalmente chegara. A escuridão que vinha com ela e os barulhos da floresta adensaram o ambiente na clareira, onde a água ainda corria, sem pressa; onde o vento fazia sussurrar as folhas das grandes copas lá em cima; onde a fauna notívaga escondida no arvoredo anunciava a sua presença por entre assobios e vocalizações.

A Terra não saíra do seu eixo, não falhara a precisão da sua rotação, tampouco implodira e se dera início a uma versão instantânea do Apocalipse nos últimos minutos, talvez horas. Para além da chegada da noite, e do que vinha com ela, tudo se mantinha igual.

Tudo exceto Kim e Jake.

O silêncio envolvia-os desde que ele se perdera totalmente no corpo dela, e prolongou-se até o calor os abandonar. Normalmente, a morena nunca se inibia de partilhar o que sentia e ,apesar da sua ingenuidade intrínseca, ela acabou por preferir o silêncio quando as sensações novas a atingiram com intensidade, talvez porque Jake parecera igualmente perdido e para ele não houvera novidade. Talvez fosse apenas certo o que ela sentira, e não precisara de o verbalizar.

Ambos se mantinham calados desde então, o silêncio a camuflá-los na paisagem e a torná-los parte dela, sem tornar o ambiente desconfortável. Na realidade, o raro silêncio era bem-vindo, o que se refletia na postura do casal. Ela nunca se sentira tão relaxada desde que se lembrava e ele nunca se mostrara tão tranquilo e sossegado.

O momento despretensioso terminou quando Jake, ainda deitado sobre o vestido da rapariga, decidiu que a temperatura havia baixado o suficiente para continuarem despidos sobre a rocha fria. Com movimentos preguiçosos e lentos, ele brincou com os longos cabelos espalhados sobre a sua barriga, até ela notar que ele estava presente e consciente da sua proximidade.

Kim deitara a cabeça sobre o seu tronco há algum tempo, e o seu olhar mantinha-se cravado no céu estrelado, que a ausência de iluminação artificial e poluição na montanha deixava observar com clareza, desde então. Ela puxara instintivamente o braço dele para lhe cobrir a cintura nua e, naquele momento, ainda traçava linhas imaginárias no membro pesado sobre si.

– Uma moeda pelos teus pensamentos.

Jake quebrou o silêncio e surpreendeu-se com a rouquidão profunda na sua voz, assim como o sabor férreo que acompanhou as palavras. Kim apenas sorriu, dedicando-se a puxar distraidamente os pelos do braço dele, e o silêncio manteve-se até Jake tossir para aclarar a garganta ressequida.

– Não precisas de me dar uma moeda – disse ela, mantendo o sorriso, sem deixar de observar o céu acima deles. – Estava apenas a pensar que o Pinóquio pediu um desejo à Fada Azul para ser um menino de verdade. – Jake deu por si a sorrir pela referência à história infantil, e deixou-a continuar. – Talvez se eu pedisse às estrelas também pudesse ser uma menina de verdade...

A voz doce trouxe palavras arrastadas, envoltas numa melancolia que forçou Jake a abrir os olhos e a perceber o que a atormentava. Kim já não sorria, e no entanto, não conseguia desviar o olhar das estrelas que a fascinavam pelos motivos errados.

– Mas o que é triste é que, mesmo que o Pinóquio tivesse existido, ele seria sempre um boneco de madeira. Ele nunca seria humano, como eu nunca serei, porque a maioria das estrelas que vemos agora estão mortas há muito tempo, sabias?

Um fulgor de entusiasmo acendeu-lhe o olhar por perceber o que estava para lá da Terra, por não ser ignorante sobre tudo o que a rodeava. E no entanto, por compreender que aquele simples saber lhe fora imposto por alguém que a criara com um propósito que ela iria descobrir nas próximas horas, a expressão fechou-se de novo.

– A luz é tudo o que resta delas. Das estrelas mortas – acrescentou, erguendo o polegar e fechando um olho para conseguir focar o pequeno dedo que agora cobria a Estrela Polar, numa breve ilusão de que podia ser tão grande quanto as estrelas que observava no céu imenso. – Elas já não estão lá e apenas desejar não chega.

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