40. Canadá

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Dia 83

Voltar à estrada foi um alívio. Depois do incidente com Aidan embriagado, de terem sido assaltados e perderem tudo de um momento para o outro, de terem perdido um irmão e um amigo, voltar à estrada era a coisa mais acertada a fazer.

Não podiam ficar parados numa cidade deserta, num Estado a meio do país, à espera da morte. O objetivo daquela viagem era livrá-los daquela prisão territorial, da doença que os perseguia. Voltariam para casa por muito sangue que fosse derramado, por muitas barreiras que se erguessem pelo caminho. Não era só David que continuava a pensar assim e isso refletia-se nos rostos do grupo que o acompanhava.

Não tinham nada, mas tinham-se uns aos outros. Depois de Aidan, fariam o possível e impossível para se manterem unidos pois sabiam que não aguentariam perder mais ninguém. O dinheiro não faria falta, concluíram, quando já perdera toda a importância. O dinheiro e tudo o resto que lhes tinham roubado. Quando se tratava de sobreviver, tudo o resto não importava. Nem mesmo o facto de não terem dado um funeral digno a Aidan, por terem que abandoná-lo naquele local se queriam sobreviver.

Jake tivera sangue frio o suficiente para enterrar o amigo. Depois, roubar um carro parecera-lhe a coisa mais certa a fazer. Roubar. Roubar tornara-se demasiado fácil. O carro estava simplesmente ali. Os brinquedos no banco de trás, a cadeirinha de criança, os desenhos infantis no tablier não chegaram para lhe amolecer o coração desfeito. Com gestos mecânicos e impensados, tudo se resumiu a desinfetar, procurar pela chave caída no chão e voltar ao hotel.

Ele ainda pensava em como o azar e a sorte andavam de mãos dadas, quando Kim cortou o silêncio sufocante e o tirou daquele transe nostálgico. Há horas que conduziam, depois de combinarem que não haveria mais paragens. Nenhum motel, nenhum hotel, nenhuma estrada secundária. Não se separariam uns dos outros. A próxima paragem era depois da fronteira.

– Olhem ali! – gritou Kim, para surpresa de todos. David travou bruscamente ao ouvir o grito da rapariga e demorou mais do que o suposto para perceber a sua causa. Ela não pretendia assustar ninguém e Jake foi o primeiro a percebê-lo quando olhou pela janela e viu o sorriso da rapariga se alargar.

– É o fim do Mundo? – atirou David, não tendo outro comentário a fazer. Nunca vira o céu assim.

Kim sorriu antes de lhes responder. Ela tinha quase a certeza que não era a primeira vez que via aquelas luzes. Não podia ser, tal era a representação mental nítida que tinha na cabeça. Para muitos, as Luzes do Norte não passavam de ilusões de ótica, de um dia quente que se avizinhava. Extraterrestres, talvez. Estrelas cadentes. Para ela, era uma das mais bonitas expressões da Natureza.

Do outro lado do vidro, no negrume da noite de Verão, chamas ténues cintilavam no horizonte. Verdes fluorescentes, lavaredas vermelhas e pinceladas de azul formavam uma cortina brilhante de formas delicadas, numa constante dança perfeita.

– Aurora boreal – sussurrou Kim, embaciando o vidro com o hálito quente. – Sempre que aparecem significa que houve uma tempestade solar. Como é que uma coisa que nos destruiria em milésimos de segundos pode ter um efeito tão bonito?

– Como é que tu sabes isso tudo se nem te lembras de onde vens? – perguntou David, curioso e fascinado com o conhecimento anormal da rapariga. A pergunta só fez com que Kim sorrisse mais ainda, para depois encolher os ombros.

– Simplesmente sei.

Jake também sorria. Ao contrário de todos os outros não olhava para o céu, mas para a rapariga que sustinha o maior sorriso que ele já vira na face dela. Ela estava verdadeiramente feliz. Com luzes, com uma simples flor ou com o botão automático dos vidros do carro que experimenta durante tarde. O que interessava? Ele gostava de a ver feliz. Quase que o fazia esquecer da parte negra da sua vida. Ela era a sua luz.

UPRISINGWhere stories live. Discover now