68. Casa

2.8K 245 120
                                    

Kim deixara as lágrimas secar na pele suja, sem alento para as limpar ou aliviar o ardor que produziam nos seus olhos cansados. A rapariga perdera-se num limbo de tristeza e desesperança enquanto o sol subia no céu e ia deixando a manhã para trás. Sem noção do tempo e do espaço, ela permitira-se agir mecanicamente, soltando palavras desconexas que Jake já não reconhecia e provavelmente não ouvia.

Num acesso de demência, enquanto cantava uma melodia que ouvira na rádio, antes do pesadelo, ela decidiu alterar a sua identidade de uma vez. Distraída, Kim copiou os riscos tatuados no braço de Jake, que representavam o nome dele num alfabeto antigo do seu país, para o seu pulso mutilado. A ânsia de riscar a identidade que ela não via como sua, que apenas servia como controlo e para relembrar o passado, simplesmente fez com que a pele queimada sangrasse sob os riscos violentos da caneta.

A jovem chegara a ponderar tirar sangue para poder transferi-lo para o corpo dele, na breve ilusão de que a cura corresse nas suas veias e ela conseguisse salvá-lo com aquela troca tão simples. Vida por vida.

– Kim...

A voz doce despertou-a da realidade alheia em que entrara há longos minutos, ainda assim a morena não reagiu a Rachel, que entrou no carro e se sentou sobre o espaço quase inexistente naquele banco.

Provavelmente a rapariga notara o sangue que lhe escorria pelo pulso, talvez o tivesse confundido pelo fluido que lhe manchava as mãos há horas, dela, dele, que ainda não se dignara a limpar.

Na verdade Rachel ouvira a conversa entre o casal e só então decidira confrontar o tema sensível. A loira descobrira que, para além de perder a pessoa mais importante da sua vida, estava prestes a ficar sem a melhor pessoa dessa mesma vida que já não fazia sentido.

As lágrimas suspensas no olhar cansado denunciavam-lhe a fraqueza e Kim sentiu a compaixão pesar-lhe no peito, no entanto, ela apenas conseguiu olhar a loira. Ela apenas conseguia usar o sentido mais básico da visão, sem erguer a cabeça do peito dele, sem querer descodificar tudo o que ia no olhar da loira e que a atiraria ao fundo novamente.

Ambas pareciam esgotadas, sem mais forma de expressar emoções, e Kim sabia que Rachel não aguentaria outra perda.

– Lamento, Rachel – murmurou a mais nova, erguendo finalmente o tronco, sem saber o que fazer mais na presença da amiga destroçada.

– Eu também.

Rachel ensaiou um sorriso molhado de lágrimas que não tombavam, sem vergonha de demonstrar o vazio que lhe ia no âmago e Kim decidiu-se por seguir o instinto e o coração. Sem pensar, a morena sentou-se com dificuldade e abraçou a amiga que num dia difícil considerara como irmã, no dia em que o mundo dela desabara pela primeira vez.

Pela primeira vez na sua curta vida, Kim sentia necessidade física de proximidade com alguém sem ser Jake, por causa de Jake, e esperou que o abraço apertado conseguisse ter força suficiente para aquietar o coração de ambas quando não havia mais a fazer.

– O Jake vai-se safar – balbuciou Rachel contra os cabelos sujos da morena, alisando-os e acariciando-lhe os ombros magros.

– Como?

– Ele é forte – afirmou, convicta, procurando o olhar apagado de Kim, tentando imprimir-lhe alguma esperança pelo sorriso fraco que lhe dirigiu. – Ele é tão mais forte do que eu e eu estive doente e salvei-me, lembras-te? Ele vai aguentar.

Rachel parecia tão segura da força de Jake em relação à doença que Kim quase preferiu a mentira e ignorou a verdade que apenas ela e o rapaz sabiam. Já não valia a pena esconder e ela arrependia-se de tê-lo feito por tanto tempo. Talvez se tivesse contado a todos que possuía a cura houvesse um esforço em conjunto para a manter, para assegurar que ninguém pereceria à doença.

UPRISINGWhere stories live. Discover now