0. Prólogo

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Dia 36

VOZES.

Algures bem longe, no fundo de sua mente, ela conseguia ouvi-las. Sussurrantes, desconhecidas e distintas.

O seu corpo, ainda dormente e inerte, recebia os primeiros estímulos, reagindo tão violentamente que as vozes dentro da sua cabeça começaram a gritar de uma forma quase insuportável.

Então, a um ritmo angustiante e interminável, os sons diminuíram de intensidade, dando lugar a sensações que desconhecia. O que começou por ser uma breve pressão sobre a sua pele aumentou gradualmente até se tornar uma dor aguda. O seu braço começou a arder e depois se tornou dormente. Segundos depois, parte de si queimava, ardia e forçava-a a contrair os músculos involuntariamente, embora não soubesse o motivo de reagir de tal maneira.

Todas aquelas novas sensações duraram várias horas. O seu braço continuou a arder; o seu corpo não parou de se contorcer. As vozes cessaram pouco depois e, então, a sua mente sossegou.

Pela primeira vez, surgiram-lhe representações mentais que não ela não conseguia identificar. Em poucos minutos, ela aprendeu a distinguir homens de mulheres, animais de plantas. Pôde sentir o conforto de uma relação familiar, o sabor amargo e o vazio pesado da solidão. Podia ouvir na sua cabeça o rugir furioso do mar e entender como o ruído citadino era ensurdecedor. Ela até conseguia recordar-se do maravilhoso cheiro a café pela manhã, trazendo-lhe uma doce saudade. Podia apreender todas as representações que os sentidos humanos proporcionavam, mas, na verdade, nunca vivera nenhuma daquelas realidades para poder conhecê-las.

Nunca tinha aberto os olhos para ver através deles; nunca tinha movido o corpo daquele leito gelatinoso que a imobilizara, conservara e protegera dos perigos exteriores durante semanas, nem tinha tido a oportunidade de receber estímulos para além de dor. Fá-lo-ia em breve. Por enquanto, a realidade cor-de-rosa era implementada em si, fortalecendo-a mentalmente, enriquecendo-a e preparando-a para o que estava por vir.

Horas depois, não havia mais desconforto. Tudo permanecia calmo. As vozes voltaram, mas ela conseguia percebê-las ao longe. Quem quer que fosse não esperava que ela estivesse acordada ou que tivesse a noção do que a rodeava. Ainda era demasiado cedo para isso.

Assim que o silêncio se tornou total, ela sentiu-se segura e, pela primeira vez, abriu os olhos. Ofuscada pela luz dos grandes candeeiros acima de si no teto, forçou as débeis pálpebras a fecharem com força. Pestanejou várias vezes, tentando focar a fraca visão. Moveu a mão, o braço acompanhou o movimento, preparando-se para testar tudo o que assimilara durante aquelas semanas de inconsciência e desenvolvimento.

Levou a mão ao rosto e cobriu os olhos sensíveis. A sua mente organizou os pensamentos simultaneamente e, como que por magia, tudo se tornou mais fácil.

Os olhos, apesar de sensíveis à intensidade da luz, viram pela primeira vez. E o que viram fê-la entreabrir os lábios e deixar escapar uma exclamação surpresa. O seu corpo, completamente desprovido de roupa, ainda estava envolvido por uma camada viscosa e pegajosa da qual ainda dependia para sobreviver.

Os seus lábios contraíram levemente ao recordar as mulheres que vira na sua mente. Eram maravilhosas, de pele rosada e sedosa. A sua pele era completamente o oposto: húmida, arroxeada e engelhada, como a de um bebé.

Ao seu lado, havia centenas de sacos da mesma substância interligados através de grossos tubos que se perdiam no teto, onde a luz não permitia ver. O cheiro característico dos tecidos em desenvolvimento era abafado pelo intenso desinfetante que a rodeava. O único som audível vinha das diversas turbinas dispostas pelo grande armazém embrionário. Não havia nada que a fizesse acreditar que o que via e ouvia era normal.

Ela estava maravilhada pela novidade, mas sabia que nada fazia sentido. Na sua cabeça, não havia nada que a lembrasse daquele local, de todos aqueles seres envolvidos em cápsulas gelatinosas, semelhantes aos casulos dos insetos que vira entre as belas flores dos jardins, ou algo que a fizesse sentir-se segura naquele leito pegajoso.

Não conseguia ter memória de alguma vez ter visto ou sentido algo assim.

Inspirou fundo e piscou ao observar o que a mantinha deitada. O seu tronco estava ligado à substância por diversos fios condutores de químicos importantes para a sua maturação, e não tinha a certeza se conseguiria dali sozinha. Ao seu lado, uma máquina que monitorizava o seu batimento cardíaco piscava insistentemente um aviso vermelho, que ela não conseguia ler.

Por que ninguém a recebia agora que havia acordado? Por que ninguém lhe removia os fios que a envolviam, a vestia decentemente e a instruía a voltar para casa?

Foi então que o assombro tomou conta das suas faces rubras. Ela não tinha para onde ir! E mesmo que tivesse, nunca saberia a localização,  já que não conseguia lembrar-se da sua própria vida à exceção daquele sítio. Teria perdido a memória e estaria confinada àquele espaço para ser tratada?

Procurava mil e umas respostas para as suas perguntas enquanto, quase distraída, puxava um dos fios que a prendiam àquela cama. O cateter espetado no seu braço foi arrancado de um puxão e um gemido rouco e involuntário escapou dos seus lábios. Um líquido espesso e vermelho escorreu do seu pulso e, embora soubesse que era sangue, ela continuou a puxar todos os fios que a mantinham presa. Quando finalmente se sentiu livre, um alarme quase silencioso começou a soar, mas ela não se demoveu. Ergueu-se num pulo e rolou para o lado, caindo no chão húmido. Tentou levantar-se, mas as suas pernas inexperientes não cooperaram rapidamente. Limpou o pulso ensanguentado às pernas nuas e deu alguns passos trémulos em direção à saída.

Certamente, alguém apareceria para ajudá-la. Certamente, alguém experiente a examinaria e aliviaria as náuseas constantes e dores que começavam a tomar conta do seu corpo.

Não ficou surpresa quando uma porta foi abruptamente aberta e três homens vestidos de verde se aproximaram dela. No entanto, não esperava que trouxessem uma estranha maca, feita de vidro transparente, forrada por ventosas e tubos.

Algo estava errado.

Consciente da sua nudez, ela tentou cobrir-se e mover-se com dignidade, mas eles pareciam não se importar com normas sociais naquele momento. Sem esforço, pegaram nela como se fosse um saco de batatas e colocaram-na na maca. Uma máscara com um cheiro nauseante, que não lhe permitia respirar decentemente, foi pressionada com força contra o seu rosto frágil e, sem demora e apesar da dor que poderia sentir, ela foi entubada de novo.

Queria exigir explicações para tal tratamento, mas não tinha forças para que as palavras saíssem. A inconsciência voltou e tudo se apagou de repente, obrigando-a a esquecer as queixas e a dor. Talvez as lembrasse depois, quando acordasse.

Depois.

Quando alguém permitisse que ela pudesse viver.

***

NOTA DE AUTORA

Prólogo descritivo e provavelmente com a descrição e peça de puzzle mais importante da história. Espero que gostem.

PS: Aguentem as minhas notas de autora chatas ao longo da história. Eu gosto muito de dizer coisas por aqui e não sei como não fazê-lo. Se continuarem a história vão perceber o que estou a dizer ahah. 

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