50. Defectus

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Kim não teve tempo para se preparar para o ataque. A sua semelhante, que acabara de mostrar toda a emoção por finalmente a ter conhecido, disferiu um golpe com a pequena faca tão rapidamente que Kim não conseguiu reagir de imediato.

Ela sentiu a pele abrir-se num corte fino, o ardor que acompanhava o sangue liberto da ferida que lhe fustigara a face. O segundo golpe, próximo dos olhos, forçou-a a erguer os braços instantaneamente e depressa sentiu a lâmina cravar-se nos seus antebraços, cortando e picando a pele sensível.

Kim gritou enquanto a dor e os bramidos da irmã a dilaceravam, encolheu-se o mais que conseguiu no sofá e esperou pela morte.

– Missy! Para, estás louca? – a voz masculina sobrepôs-se aos guinchos agudos, à raiva que a morena lhe dirigia. – Para!

Kim não conseguia abrir os olhos, não conseguia sequer forçar o seu corpo a mover-se e a fugir dos ataques, nem mesmo quando estes pararam. Ela deixou de sentir a dor afiada fustigar-lhe os braços, ouviu a voz igual à sua dirigir-se ao homem que a tirara da estrada, ameaçando-o, debatendo-se violentamente contra o aperto dos braços dele.

Muito tempo depois que ela não conseguia contabilizar ganhou coragem e abriu os olhos, o pânico a dominá-la como não tinha memória. Como acontecera naquela cave com o homem de bata. Como tudo o que vivera até então. Tudo o que ela conhecera até então fora apenas violência e dor.

Tornou a fechar os olhos, depois de ver os braços macerados, esperando que tudo não passasse de um pesadelo, que a dor não fosse real. Que não a quisessem matar.

Ela não soube quanto tempo se manteve naquele estado de apatia, com o corpo a fechar-se das feridas, criando uma crosta que ao mínimo movimento se rompia e o ardor recomeçava. Ela preferiu não se mover, manteve a sua atividade cerebral reduzida ao mínimo que a semiconsciência concedia e esperou. Esperou por algo que não podia explicar.

– Hey – a voz não serviu para trazê-la à realidade. – Hey. Acorda. Tens de acordar... Consegues ouvir-me?

Uma mão grande e fria tocou-lhe no ombro nu e Kim saltou quase no mesmo instante. Sem perceber porque reagia daquela forma, encolheu-se na outra ponta do sofá, o casaco que lhe cobrira o corpo nu caído no chão.

Ela não tinha como importar-se com a nudez, só não queria que lhe doesse. Paul deve tê-lo percebido porque moveu-se com cuidado, temendo pela reação esquiva da rapariga. Ela era uma deles, não merecia o que lhe acontecera. Não merecia o ataque gratuito que partira da mulher com quem partilhava a vida. Que amava mais do que tudo. Não fazia simplesmente sentido.

– Tu... tu tens que fugir – ele disse, sem lhe tocar, aproximando-se apenas o suficiente para que ela atentasse no que lhe dizia. – És um erro, K42. Como é que fugiste?

– Eu... eu só não queria morrer.

– Eu sei, querida. Mas... tu não podes estar viva. Se te apanham fora da HCC matam-te, percebes isso? Eles matam-te – confessou o homem, visivelmente alterado e assustado à medida que as palavras lhe saiam da boca trémula.

– Porque me querem matar? Eu não fiz mal a ninguém.

Ele assentiu, a compaixão a modificar-lhe o rosto tenso.

– Como saíste de lá? – ele devolveu a pergunta, curioso com a fuga da rapariga. Em todos os meses que trabalhara na corporação não houvera uma única fuga. O controlo era demasiado eficaz para que um defectus passasse as portas do complexo sem ser abatido.

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