Especial de Fim de Ano

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      Yara olhou pela janela, para a rua onde algumas pessoas passavam sorridentes em grupos voltando da praia, outras caminhavam apressadas carregando sacolas de compras, e outras ainda apenas passeavam, aproveitando o último pôr-do-sol do ano.

Suspirou, voltando os olhos para o caderno à sua frente, em cuja página quase vazia se encontrava escrita a presente data com a sua caligrafia.

"31 de Dezembro de 2020"

Pousou cuidadosamente a caneta ali, endireitou as costas na cadeira e esticou os braços para cima, sentindo todos os seus músculos relaxarem no pescoço e ao longo da espinha.

Olhou novamente para a folha, ainda sem conseguir ver um começo para tudo o que desejava exprimir.

Escrever havia se tornado uma espécie de terapia. Aconselhada por Léia e incentivada por Leandra, teve seus receios e dificuldades no início, contudo, quando a escrita a tomou para si, abraçou-a e fez com que se sentisse em casa, nunca mais parou.

Não era apenas sobre ter as suas cicatrizes transcritas num pedaço de papel, mas também sobre sentir que finalmente estava tomando o controle da dor, tendo assim o poder de transformá-la, para não mais ter que chorar por não saber como lidar com ela.

Era sobre alívio, era sobre compreensão.

A caneta, novamente em suas mãos, esperava para continuar a ser usada. Talvez para escrever uma restrospetiva do ano, ou quem sabe descrever o que se passava em seu coração naquele momento. As opções eram diversas, mas em nenhum dos casos sabia como começar.

Por fim, dando-se conta das horas e de que nada sairia no momento, deixou o caderno de lado e ergueu-se, tendo em conta que tinha um compromisso em pouco mais de duas horas.

Empurrou cuidadosamente uma das portas escorregadias do novo guarda-roupa, deparando-se com o vestido branco que usaria logo à noite, pendurado no cabide ao lado do vermelho que usara na noite de Natal — data que, naquele ano, havia comemorado na casa dos avós em Madeiral, cidade vizinha de Nova Atlanta e a uma hora e meia de Porto.

A monotonia da ampla chácara de dona Luísa e seu Samuel foi substituída pelas energias contagiantes de Mariana e Victória, que não precisaram de cerimónias para se sentir em casa.

Em meio à alegria e ao espírito natalino, envolvida pela emoção de estar estreitando os laços com os avós, Lacerda não pôde deixar de sentir o coração apertado pela falta da mãe, imaginando como seria se ela estivesse presente, porém confortada por pensar na sua felicidade ao ver a relação dela com os pais.

Sorriu, lembrando-se da sacola cheia de doces e aperitivos que o seu avô, confeiteito de mão cheia, preparou para que elas levassem para casa.

Deixaram a pequena cidade no dia 28 — sob as recomendações de Luísa para que não demorassem a voltar e os pedidos de Samuel para que se cuidassem e dessem notícias ao chegar —, ela com o coração preenchido pela emoção e alegria de estar podendo construir a relação que sempre desejou com os seus avós, desde a tenra idade.

Voltou feliz, voltou leve.

Saiu dos seus devaneios, tirando para fora a peça simples de gola média e mangas que dobradas nos cotovelos — presente da avó —, adornada por botões castanhos que desciam em linha reta até a barra pouco acima dos joelhos

Estendeu-a sobre a cama antes de sair do quarto em direção à cozinha, quando sentiu a sua barriga roncar. Não comia nada desde o almoço, cerca de cinco horas atrás, pelo que seu estômago começava a reclamar.

Caminhou descalça pela casa quase silenciosa, devido à ausência das mais novas, cuja virada do ano passariam ao lado do pai e da madrasta, em Nova Atlanta.

No Compasso das Estrelas | ⚢Where stories live. Discover now