32 [re•ca•í•da] (!)

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[ato ou efeito de recair; voltar a fazer o que o que não se fazia mais.]

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CHARLOTTE

À alguns anos atrás, logo após a minha partida da faculdade de direito, eu não tinha lugar para ir. Quer dizer, eu tinha, eu poderia ir para casa, mas essa era uma opção fora de cogitação, pois os meus pais estavam absolutamente desgostosos com a minha atitude e eu também não queria ficar perto deles naquele fatídico momento.

Por sorte, ou devo dizer pela bondade desmedida da minha melhor amiga Naomi Matsuda, o sofá de sua sala me foi cedido e foi nele que dormi por alguns meses até arrumar um emprego e conseguir grana o suficiente para ter meu próprio apartamento.

Eu já era amiga da Naomi na época, pois nós nos conhecemos muito antes da minha vida se inverter de ponta cabeça. Na verdade, ela me conheceu quando eu estava começando a despertar para toda a realidade da minha vida que me incomodava.

Por conta disso, meus pais implicaram com ela desde o princípio de nossa amizade. Eles julgavam a nossa aproximação como a causadora da minha rebeldia, diziam que era culpa da Naomi eu ter agido como agi. Claro que estavam errados e no fundo eles sempre souberam disso. Eu nunca fui fácil de manejar, mas é menos doloroso ao ego fingir que a culpa pertence a outra pessoa.

Conheci a Naomi no ensino médio, mais especificamente aos meus 15 anos de idade. Eu era a patricinha que sempre teve tudo o que quis de bandeja e mesmo assim não estava satisfeita com nada. Ela era a gênia de ouro, ganhadora de prêmios acadêmicos juvenis, que honrava o esforço dos pais que ralavam no trabalho para sustentar a casa e o futuro brilhante que ela teria.

Nossos mundos se chocaram quando ambas, frustradas após um terrível dia de adolescência, decidiram entrar numa loja de bebida e fingir que tinham idade o suficiente para comprar qualquer coisa lá dentro. Ela era e sempre será mais velha que eu, mas sua aparência não demonstrava isso e juntas, nos fomos enxotadas de lá sob ameaças de envolvimento das autoridades.

Estava chovendo naquela tarde. Ambas empurradas para a calçada da loja sem nenhuma preocupação do dono da mesma. Nós nos entreolhamos e em apenas alguns segundos, compreendemos a dor uma da outra: hormônios, juventude, pais, toda a maldita pressão.

"Você fuma?" Eu me lembro de ter perguntado pra ela, enquanto a chuva caia sobre nós.

"Não." Ela respondeu tímida, ajustando seu óculos de grau em seu rosto.

"Quer tentar?" Enfiei a mão no bolso do meu casaco de moletom - que minha mãe odiava que eu usasse por ser barato demais para mim - e mostrei a ela o maço de cigarros que consegui roubar antes de ser pega pelo dono da loja.

A partir disso, nós nos tornamos inseparáveis.

Desde aquela época, Naomi e eu nunca tivemos nenhum tipo de altercação acalorada, nós nunca fomos do tipo briguentas. É claro que nós irritamos uma a outra de vez em quando, mas é só parte da graça de ser tão íntima de alguém. Você conhece todos os segredos daquela pessoa, todos os defeitos e qualidades, todas as pequenas coisas.

Portanto, Naomi sabia muito bem o quão despreparada para a cozinha eu estava na época em que morei em seu sofá. Era por isso que ela deixava comida pronta ou me deixava dinheiro para comprar algo fora. Por isso também essa é a única memória que tenho dela gritando comigo, já que eu quase incendiei sua cozinha na tentativa de fazer alguns cookies com gotas de chocolate. Eu achei que tinha tudo sob controle, mas não tinha. Deu-se aí o apelido que ela ainda usa comigo. Ela ficou louca de raiva, mas depois tudo se transformou nunca grande piada.

𝗙𝗲𝘁𝗶𝘀𝗵 • H.S.Where stories live. Discover now