18

473 52 107
                                    


Terça-feira, 38 dias para o baile...

            Eu estava feliz. Após um milhão de dias ruins, finalmente estava saboreando os dias bons.
Não estava bem apenas porque Carter Grayson, o garoto cujo os olhos me deixam sem fôlego, me ama. Estava feliz porque tudo estava se encaixando como deveria. Jay havia sido julgado, e ao contrário do que pensávamos, prisão domiciliar pode ser tão infernal quanto uma prisão normal. Acontece que "alguém" mostrou provas concretas de que o Sr. Jensen conseguiria manter contato visual comigo sempre que ele quisesse, e por isso todas as suas janelas foram legalmente seladas. Ele não podia me ver, ou ver a rua em que cresceu, ou qualquer coisa que estivesse fora de sua casa pelos próximos meses, ou até que aceitasse voltar ao tratamento.
O juiz ordenou que sua exclusão da sociedade fosse extrema até segunda ordem. Em outras palavras, ele não podia sequer ir ao seu quintal tomar um ar, porque se fosse, seria preso.
Ou seja, até que seu estado mental seja "domado", estou livre de Jay Jensen e sua loucura.
Além de Jay e sua prisão de alguns metros quadrados, eu estava indo bem nas pesquisas. Os votos estavam acumulando, os dias estavam se passando e Alison Prescott estava perdendo.
As cinco festas restantes foram dadas, apesar de não ter comparecido, soube que foram um sucesso. Graças a isso, eu estava mais em foco, não só no colégio, mas como em Chicago, do que qualquer garotinha que tenha conseguido fazer sucesso no Youtube. Eu era uma estrela.
Apesar de poder soar estranho, também estou feliz com o fato de que meus pais vão se divorciar. Mamãe ficará com a casa, e com Joan — o que de longe é o meu maior sonho.
Eu iria morar com o meu pai no Chicago Hotel, e continuaria a estudar no St. Augustus até me formar, o que será com honras, pois havia conseguido melhorar as minhas notas. Para ser sincera, eu poderia repetir de ano se não fosse pelo Sr. Johnson. Ele havia conseguido convencer os outros professores a me darem uma segunda chance, e então, graças a ele e sua persistência em mim, consegui a chance de refazer algumas provas e entregar trabalhos complementares.
E, só para relembrar, estava feliz porque sim, Carter Grayson me amava como eu o amava. Então, apesar de estarmos a 38 dias para o primeiro baile em que seria o centro das atenções, eu estava feliz por tudo estar dando certo. Estava muito, muito feliz por ainda estar viva.
— Você ouviu o que eu disse? — a voz distante me puxa de volta ao presente, ao carro em movimento e a música baixa. Pisco, afastando as nuvens transparentes que me cegam. — Ei, cara de fuinha! — minha irmã chama mais alto. — Ainda estão viva ou já se transportou para o país das maravilhas com seus amigos imaginários? — Joana, que infelizmente estava me levando para casa, ri debochada, e eu rolo os olhos. Afasto a testa da janela quente, e a encaro.
— Para o seu azar, ainda estou bem aqui, Joana.
— É uma pena — minha irmã do mal suspira tamborilando no volante. Ainda não entendo o porquê minha mãe me obrigou a aceitar carona de Joan, não era como se uma viagem de carro até em casa fosse mudar o fato de que tudo estava desmoronando. — Posso dizer como um ser humano funcional que o mundo seria um lugar melhor sem a sua existência nele.
MAS COMO É QUE É APRENDIZ DO DIABO? Lizzie berra, e eu apenas separo os lábios, mas não digo nada. Algo no fundo da minha garganta me impede de respirar, e ao invés da sensação de aperto me fazer voltar aos momentos apavorantes no corredor, como acontecia toda vez que essa mesma sensação me tocava, ela me leva de volta ao dia em que recebi a carta.
Ao dia em que uma parte de mim se foi desse mundo. Abano os cílios, e tento enxergar Joana, a minha irmã mais nova por pouco menos de sete minutos, sentada em sua mesa de madeira pintada de rosa, escrevendo uma carta em seu notebook. Uma carta endereçada a mim.
— Qual o seu problema? — ela bufa, me encarando com as sobrancelhas enrugadas. — Argh, porque você está me olhando assim, imbecil? — sua voz grasna me fazendo encolher os ombros por um instantes. Joan rola os olhos e se vira para a pista. — Merda, você é muito estranha, Emily. De verdade. — minha irmã tagarela. Esfrego os dedos sobre o pano macio do meu vestido. Ela continua falando e falando sobre o quanto estou esquisita, e a sensação na minha garganta me afunda na ideia não tão absurda de uma Joana Parker se passando por um amigo oculto. — E ainda por cima, mamãe me faz ser sua motorista, mesmo sabendo que odeio dirigir.
Pisco, voltando a mim e encarando-a mais uma vez.
— Deveria ter pensado nisso antes de ter rasgado os meus vestidos, Joan — relembro, e me esqueço da sensação por um instante. — Se não fosse tão estúpida não precisaria me servir como motorista. — sorrio, encostando a cabeça no encosto do banco.
— Você me provocou, você começou a me falar merda, você! — ela reclama com o tom de voz muito alto. Trinco os dentes. — Ou eu estou mentindo? — Joan pergunta batendo na minha coxa. — Hm?! Vai dizer que a culpa não foi sua? Que você não mereceu?
— O que eu fiz pra merecer? — aperto os olhos. — Nasci?! — torço o nariz. Joan rola os olhos carregados de maquiagem, bufa e dá de ombros antes de voltar a prestar atenção na estrada.
Nós havíamos brigado a alguns dias. Mamãe queria que ela fosse conosco a uma reunião com os advogado do caso contra Jay, e ela fez, como sempre, uma cena por estar sendo obrigada a ser um ser humano digno de um pouco de respeito. Acontece que quando ela começou a reclamar sobre não ter nada a ver com o meu "ex melhor amigo psicopata", essas foram suas palavras, eu lhe disse que tudo não teria acontecido se ela não houvesse introduzido Alison Prescott em nossas vidas, pois, como todos já sabiam, ela havia mexido com a cabeça de Jay.
Pelo o que ficamos sabendo ao conversar com o juiz do caso, foi Alison que disse a Jay para parar com a medicação. Ela o fez acreditar que se tivesse a mente limpa de remédios, eu poderia ver algo em seu "eu" real que fosse me fazer amá-lo como ele merecia. Em outras palavras, Joana é culpada, mais uma vez, por ter introduzido aquela víbora de cabelos escuros em nossas vidas. Então eu lhe disse tudo o que pensava sobre Alison ter feito uma pequena lavagem cerebral em Jay, o que resultou no pior dele, e ela tentou justificar tudo rasgando todos os meus vestidos e montando a frase A CULPA NA VERDADE É SUA, no chão do meu quarto.
E ela não parou por ai. Joan ficou furiosa quando nossa mãe ordenou que ela fosse minha motorista pelo final da semana, o que a impediu de sair com seus amigos ou matar aula, e isso a fez me odiar muito mais do que já odiava.
Minha irmã começou sua vingança publicando todas as páginas do meu diário que eram direcionadas aos meus sentimentos por Carter. Não que eu ligasse, ele já sabia tudo o que deveria saber, mas quando as pessoas começaram a tirar sarro da minha cara por ser "uma grande bobona melosa e apaixonada", me vi queimando de raiva.
Por sorte, a grande pegadinha de Joan fez com que Carter Grayson mudasse seu status no Facebook. Onde antes existia SOLTEIRO, gora existe EM UM RELACIONAMENTO SÉRIO COM EMILY PARKER. Então no fim as contas, eu ganhei uma motorista e uma oficialização.
— Quando você vai desistir? — a voz ranzinza da minha irmã me pergunta, e eu mesmo tentando ignorá-la, eu a deixo me atingir, pois sei exatamente onde ela quer chegar. Continuo encarando a pista à frente. — Você ouviu? — ela grasna. — Quando vai desistir?
— E porque eu deveria desistir de algo? — questiono, abanando as mãos. — Porque você não desisti? — enrugo o cenho. — Porque sou sempre eu que tenho que abrir mão das coisas?
— Porque essa não é você, Emily! — ela rosna em toda sua autoridade estúpida. O carro para no sinal vermelho, e eu movo o corpo me sentando de lado, fazendo com que o cinto belisque a pele do meu ombro nu. Analiso seu rosto com atenção. No passado, Joan disse que eu deveria parar de fingir ser outra pessoa. Ela me disse com suas palavras que eu não servia pra essa coisa de popular e rainha do baile, e muito menos servia para ser amiga de Carter. Ela me disse isso, e na época em questão não percebi a veia pulsante em seu pescoço, aquela que aparecia sempre que ela estava tentando não se sentir culpada por algo. Era a mesma veia que costumava aparecer quando ela fazia algo errado e mentia para a nossa mãe, a veia que gritava EU SINTO MUITO, MAS ESTOU SENDO UM VACA E MENTINDO PORQUE SÓ SEI ME DEFENDER DESSA MANEIRA. — Essa pessoa vestida em Prada não é você, Emily.
— E como você saberia? — resmungo brava, mesmo que concorde. Não, não sou eu, ou pelo menos não era até alguns meses atrás, mas não posso ser tão imutável quanto ela pensa. Assim como ela, posso ser a garota vestida em Prada, posso ser a garota que passa horas e horas atrás do vestido ou salto perfeito. Posso ser, quero ser, pelo menos na maior parte do tempo. O limpa para-brisas bate me fazendo voltar a superfície dos meus pensamentos submersos em confusão. Dou de ombros. — Como poderia saber que não sou essa pessoa quando você não me conhece mais, Joan? — questiono, encarando-a. Minha irmã rola os olhos cheios de maquiagem e os vira para mim como quem diz POR FAVOR, NÃO VAMOS FINGIR QUE ME ENGANA. Aperto o maxilar. — Enfim, não importa se sou ou não a garota de Prada. Só está falando isso porque sabe que vai perder — sorrio. — Você e Alison Prescott. Sabe disso.
— Eu vou perder? — Joan ri apertando os dedos sobre o volante. — Acha mesmo que colocar uma roupa bonita e fingir um namoro com um garoto gostoso vai te fazer ganhar?
— Não estamos fingindo um namoro! — rosno. — Carter e eu estamos juntos de verdade.
— Estão mesmo?! — sua voz soa um tanto desafiadora demais. — Porque me lembro muito bem de tê-lo visto se esgueirando com Alice ontem depois do vôlei.
Viro-me mais uma vez para encará-la. Seus olhos estão fixos na estrada, mas os cantos de sua boca estão repuxados em um sorriso vitorioso. NÃO CAIA NA DELA, NÃO CAIA NA DELA, Lizzie repente com os dentes serrados. Fecho os dedos com força. NÃO CAIA...
— Você é uma cobra. — sussurro, abrindo os dedos e enfiando a mão no bolso da minha jaqueta, em busca do celular. — Não consegue superar o fato de que ele me ama, de que estamos juntos, de que não importa o que faça, sempre estaremos um ao lado do outro, então precisa agir como uma vaca — reclamo. —, mas eu não vou cair no seu jogo, Joan. Então pode continuar tentando fazer com que eu me sinta mal o quanto quiser, porque não ligo.
— Não estou tentando te deixar mal, Emily. — Joan replica virando à esquerda. — Só estou sendo sincera com você. Acho que sou a única pessoa que tem sido sincera com você, Emily, e nem percebe isso. Sequer considera as coisas que digo — minha irmã indaga me fazendo encará-la, surpresa. Nunca a ouvi falar de maneira tão séria. — Carter Grayson gosta de transar, e você é a nova peça no tabuleiro dele. É um jogo. Um jogo do qual você vai sair machucada.
Aperto os olhos, abano a cabeça e bufo. Por um instante, um misero e ridículo instante, pensei que Joana finalmente agiria como um ser humano digno da minha atenção. Mas não. Ela nunca vai conseguir ser uma pessoa digna de atenção, não enquanto o mundo for seu umbigo. — Só acho que deveria tentar enxergar as coisas, Emily, porque garotas como voc-
— Eu te odeio — a interrompo. — Sabia disso? — pergunto, encarando seu rosto perfeito e cheio de maquiagem. — E não é por você falar essas bobagens, até porque nada que saia da sua boca me importa mais, Joan — sorrio. —, mas eu te odeio por você ser você. E odeio os nossos pais por terem ficado com você quando podiam ter só a mim, o bebê que foi planejado, o bebê que eles queriam! — resmungo, ou grito. Não tenho muita certeza, acho que Lizzie está no automático e já não tenho mais ideia do que estou falando ou qual tom estou usando. Apenas sei que o que sai dos meus lábios a atinge, pois seus olhos saem da pista e me encaram arregalados. O bater do limpador de para-brisas ecoa entre a música quando o carro par mais uma vez no sinal vermelho. O rosto de Joan parece um tomate de tão vermelho. — Sabia que a um tempo atrás peguei mamãe falando sobre você com a tia Margaret? — pergunto, encostando a cabeça no banco. — Eu me lembro porque foi a primeira vez que ela te bateu. No rosto. — suspiro, e sorrio de lado. — Ela disse: eu não consigo entender como elas podem ser tão diferentes, Margie. Ás vezes acho que o hospital a trocou, que em algum lugar no mundo eu tenho uma garotinha perfeita e educada em algum lugar — digo, abando os ombros enquanto tento imitar o tom de voz que mamãe havia usado para se referir a Joan. — porque não é possível que essa cobrinha venenosa tenha saído da minha barriga. Eu sei que é horrível estar falando isso, mas Joan sempre foi tão diferente de Emily, ela sempre foi tão má e incontrolável. É como se ela simplesmente adorasse atormentar a vida dos outros, como se isso a fizesse feliz de algum jeito mórbido, então não entendo como ela pode ser minha filha porque nada me deixa mais enjoada do que pessoa que se divertem com o sofrimento dos outros. — sorrio, virando a cabeça para o lado, para olhá-la. — Eu só queria que ela voltasse a ser aquele bebezinho rosado de antes, então eu poderia fazê-la ser diferente do que é hoje. Talvez eu conseguisse fazer isso.
O silêncio de nossas vozes é cortado apenas pela música, o limpador de para-brisa e a chuva fina do lado de fora. Ela mantem os olhos arregalados em mim, eles estão cheios de lágrimas, e seus lábios tremem como se quisesse dizer algo, mas não soubessem o que. Sorrio.
— Achou mesmo que era a única que estava em casa naquele dia, Joan? Pensou mesmo que foi a única a ouvi-las conversar? — rio, esfregando as pontas dos dedos no meu jeans. O carro atrás da gente buzina três vezes até que ela aperte os lábios, engate a marcha e comece a avançar no trânsito. Meu peito dói quando meu coração começa a sair do ritmo, minhas mãos soam e minha cabeça dói por todas as coisas que eu havia acabado de dizer. Não sei como é ser má o tempo todo, mas se essa era a sensação que Joan sentia quando me dizia coisas horríveis, ela estava com certeza pior do que poderia imaginar. Eu não estava feliz por todas as coisas que haviam saído da minha boca, pelo menos não sobre a conversa de mamãe com tia Margie, mas não podia voltar atrás agora. Já havia dito, já havia a feito ficar furiosa, já havia sido impregnada pelo gosto amargo de ser uma pessoa terrível. Não tinha volta. — De qualquer modo — dou de ombros, e viro o rosto para o lado da janela. —, você merece toda essa merda que é sua vida.
Não sei como acontece, estou olhando para fora, para a chuva e para os carros correndo de um lado para o outro, mas acontece rápido. Tão rápido que a dor em minha testa chega antes mesmo dela atingir o vidro fechado da janela aquecida e embaçada ao meu lado.
Seus dedos se enroscam nos fios do meu cabelo, e mesmo que eu tente, é impossível me desvencilhar deles a tempo de impedir que ela me machuque outra vez. Minha cabeça dói.
O CD passa para outra faixa, suas unhas raspam sobre minha bochecha esquerda quando agarro seu pulso e tento afastá-la de mim. Seus gritos de raivam afundam meu peito de volta ao sentimento de medo que vivia me afundando e afogando durante longos anos. E mesmo que Lizzie esteja me dizendo para não me preocupar, para revidar e agir como a mulher forte e independente que me tornei, meu corpo não me obedece, e eu não revido, nem me sinto forte.
Estamos imersas em nossas fúrias e medos, em nossas lutas por imperfeições que não reconhecemos em nossas existências, em famílias interrompidas, em mães e irmandades corrompidas pelos longos anos ruins. Imersas em nosso ódio enraizado uma pela outra.
E foi nessa imersão que fomos afogadas sem que pudéssemos perceber, não em socos, fúria ou medo, em silêncios e vidros quebrados sobre corpos quietos, corpos suspensos por cintos e esmagados por latarias quentes e líquidos de cheiros fortes. Imersas em um terrível acidente.

Emily ParkerWhere stories live. Discover now