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       FAZIA POUCO MAIS DE SETE DIAS desde que Emily havia recobrado a consciência. Desde que Joan admitiu para os seus pais, e para quem estivesse presente, que era ela a culpada pela vida azarenta e corriqueira de Emily. Que era ela a “benfeitora” por detrás dos ocorridos tão repentinos e cheios de labirintos escuros na vida de sua irmã. Que era a culpada de tudo.
Sete dias haviam se passado. As coisas começaram a mudar no instante em que ela abriu os olhos, quando os nossos risos romperam sobre as lágrimas, quando todos se aglomeraram ao redor de sua cama e quando o Dr. Salazar confirmou, através de testes, que ela estava acordada.
Naquele momento tudo pareceu mudar. O Sr. e a Sra. Parker se abraçaram como nunca antes, Joan chorou sem nenhuma máscara em seu rosto. Patric se ajoelhou ao lado da cama e sussurrou o que já sabíamos: eu te amo.
Jéssica e Alice tagarelaram algumas coisas que não me lembro, e eu fiquei em silêncio. Eu fiquei em puro e tranquilo silêncio enquanto a via piscar seus olhos.
Fiquei quieto por mais tempo que consigo me lembrar, e esperei incontáveis horas até que minha voz voltasse, mas ela não voltou. Ou pelo menos não até o instante em que ela disse algo.
Não aconteceu rápido. Pela primeira vez na história algo na vida de Emily Parker veio devagar.
Ela abriu os olhos, e como a minha, sua voz não saia. Seu silêncio durou três dias e meio até que a enfermeira Brena, com a ajuda de seus métodos estranhos, conseguisse ajudá-la a falar.
Depois de cada exame e teste, ela dormia. Parecia cansada e lenta em relação as coisas que estavam acontecendo ao seu redor. Elias Salazar, seu médico, nós disse que não haviam sequelas. Que a infecção estava controlada, que seu cérebro estava funcional, que seu corpo estava bem. Ela só precisava de mais tempo para se recuperar. Tudo dependia do tempo agora.
Mas uma noite, enquanto os nossos amigos dormiam nos bancos do lado de fora de seu quarto e seus pais estavam conversando no refeitório, ela apertou a minha mão e chamou o meu nome.
Carter? Ela disse. Eu estava com a cabeça deitada sobre seu peito, não tinha percebido que havia adormecido. Ergui a cabeça e apertei os olhos. Você. Pode. Por. Favor... Era como sua voz soava para mim, pausada e cansada. Ela estava rouca, como nunca antes. Tirar. A. Cabeça. De. Cima. Do. Meu. Peito? Foi nesse momento que ela sorriu. Está me sufocando, e isso me irrita.
Foi a maior frase que ela havia conseguido dizer em sete dias, e eu estava contente por isso.
Nós conversamos nessa noite. Na verdade, eu conversei. Lhe contei sobre todas as pessoas que vieram visita-la, li a carta de Alison. Contei sobre ter passado uma tarde com Jay. E ela sorria.
Ela sorria e assente para tudo o que eu estava lhe contando como se elas fossem as melhores coisas do mundo. Como se ela houvesse conseguido algum troféu bobo por Alison e Jay.
Eu dormi sentado naquela noite, e ela passou a madrugada acordada. Sei disso porque quando acordei, Emily já estava acordada e seus olhos estavam vermelhos, do mesmo jeito que ficavam quando ela tinha algum pesadelo e não conseguia mais dormir.
Fui para casa nessa manhã. Ela pediu, com muita dificuldade, que eu a deixasse sozinha com sua família. Eles precisavam daquele tempo para eles. Ela precisava. Joan também.

       No instante em que a porta da frente se abre, a voz brava de Barbara me atinge.
— Você chegou! — o sotaque falso da minha irmã mais velha me faz querer voltar para o hospital e esperar no estacionamento até que eu possa voltar para o quarto. — Estava na hora de voltar para casa, irmão. E não tinha momento mais apropriado para seu retorno.
— O que houve? — pergunto, e suas mãos se fecham em torno do meu pulso. — O que faz em Chicago tão cedo, Babs?! Achei que só voltaria no Natal.
— Graças a Deus que não resolvi ficar em Paris até o Natal — ela ri me puxando. —, ou poderia ter pedido o maior escândalo de todos os tempos na família Grayson, irmãozinho.
— Escândalo? — suspiro, e desvencilho o braço de seu aperto. — O que foi agora? Uh?!
— Porque você sempre presume que o escândalo é meu? — Barbara, a irmã que não vejo há quase dois anos por ter ido embora de repente, resmunga rolando os olhos. — É o papai.
— Algum problema na empresa? — enrugo o cenho. Barbara morde os lábios, move suas sobrancelhas loiras sujas e sorri exatamente como sorria quando tínhamos dez anos e ela ouvia atrás das portas. Suspiro e cruzo os braços. — Espero que não esteja conspirando outra vez. Eu não tenho forças ou paciência para um de seus momentos de acusações, Barbara. A minha namorada acaba de sair do coma, e como se isso não fosse o suficiente-
— O papai tem uma filha! — Barbara grita me interrompendo.
— O papai... — franzo os lábios. Os olhos azuis da minha irmã me encaram com paciência, e o sorriso em seus lábios me faz querer rolar os olhos. — É claro que ele tem uma filha, na verdade, duas filhas. — relembro com um sorrisinho mal humorado nos lábios. Minha irmã rola os olhos mais uma vez. — O que?! Você vai mesmo começar com a história de “vi uma garota igualzinha ao papai hoje” novamente? — questiono, esfregando as pálpebras. — Porque você simplesmente não supera essa história de família adotiva e segue sua vida, Barbara?
— Não é sobre mim desta vez, Car.— minha irmã bufa cruzando os braços. — Papai realmente tem uma filha — ela me diz com tenacidade. A expressão sorridente e conspiratória de antes havia desaparecido, e seus olhos sustentavam algo peculiar. — Uma filha biológica!
— Claro que ele tem, Babs — rio, me jogando no sofá. — Você tem uma imaginação que só.
— Ela está lá dentro, — ela resmunga, apontando para a sala de jantar. — Com os nossos pais.
A expressão no rosto da minha irmã não se parece nem um pouco com as que conheço. Ela geralmente encontra uma ou duas garotas parecidas com o nosso pai e diz que elas são dele, mas sempre tem a mesma expressão de desdém no rosto. Dessa vez, não existia desdém algum.
Me levanto, e caminho o mais rápido que posso em direção as portas de madeira. Quando elas se abrem, com um grande impacto nas dobradiças, os olhos da minha mãe me encaram.
— O que está havendo? — pergunto, analisando seu rosto vermelho e olhos marejados.
— Eu já disse — é minha irmã quem fala primeiro. Ela pousa as mãos nos meus ombros e me força a virar na direção da garota sentada em uma das cadeiras importadas da nossa mãe. Franzo as sobrancelhas. — Papai tem uma filha. — Barbara sorri. O sonho dela estava sendo realizado. Agora ela podia zombar o quanto quisesse sobre tudo o que já havia dito a respeito do nosso pai ser infiel. — Conheça a herdeira legitima do legado Grayson, Carter.
A garota de cabelos negros e olhos azuis se levanta. Arregalo os olhos.
— Clarice?!
— Vocês já se conhecem?! — minha irmã ri. — Jesus, como esse mundo é engraçado.
— Isso é algum tipo de piada? — questiono, enrugando o cenho. — Ela tem família. Um pai.
Barbara Grayson, que na verdade era Isabella Green — descobri seu nome verdadeiro quando nossos pais nós levaram para viajar, quando fomos adotar Frey, e eles deixaram os documentos no quarto. Nunca contei a ela — abana a cabeça e me chama de idiota.
— Você é tão burro, Carter — ela reclama. — Eles não estão a adotando. — Barbara abana as mãos para mim. — Ela é filha dele. De Tom. — minha irmã ri. — Com outra mulher!
Enrugo o cenho, e rio da expressão assustada no rosto de Clarice. Barbara para de ri, e me encara como se esperasse que mais cedo ou mais tarde a ficha caia. E ela cai.
— Mas eles não podem ter filhos. — sussurro, sem a menor vontade de rir. Minha mãe, Charlotte, choraminga colocando as mãos no rosto. — Vocês nós disseram que não podiam.
— Sou eu quem não posso, querido — mamãe choraminga mais alto. — Sou eu que não posso.
O modo com Barbara me encara, como se quisesse que alguém lhe desse os parabéns, me faz arquear as sobrancelhas e ir em direção a nossa mãe. Ela atravessa os braços ao meu redor.
Não era possível. Nada daquilo parecia possível. Não era possível que depois de tudo o que houve, com Emily no hospital e Joan sendo a autora da carta, outra avalanche me derrube.
Essa não era a melhor hora para uma nova incógnita, não estávamos prontos para viver outro drama. Pelo menos eu não estava. E pelo modo como minha mãe chora, nem ela.
— Eu não queria causar problemas — a voz de Clarice Campbell me causa arrepios, e minha pele dói quando minha mãe se afasta de mim e encara a garota por cima dos meus ombros. Seus dedos se fecham com força sobre meu braço. — Juro que não pensei quando resolvi aparecer aqui. Eu não pensei que causaria tantos pro-
— Problemas? — Barbara, que estava se divertindo com todo o acontecimento, a interrompe rudemente. Minha irmã abana os ombros. — Você não causou problema algum, querida. Se alguém os causou, esse alguém foi Tom e seu pinto descontrolado.
— Barbara! — mamãe grita, e sua mão se fecha com mais força sobre meu braço. Seus olhos castanhos se arregalam. — Se controle, garota. Isso não é coisa para se dizer ao seu pai.
— Ele não meu pai — minha irmã grita de volta. — Ele é pai dela. Com outra mulher, mãe.
As portas de madeira rolam lentamente, e o rosto sonolento e redondo de Frey aparece entre a pequena abertura. Mamãe corre até ela, e a agarra nos braços.
— Quem é essa? — minha pequena irmãzinha quer saber. — É a nova babá?
— Não querida. Essa é a... — Charlotte sorri, esfregando um ponto manchado na testa da garotinha em seus braços. Trago a saliva. — É a Clarice. Amiga do seu irmão. Do colégio.
— Ah, sim. — Frey balbucia, sonolenta. — Eu devo cumprimenta-la?
— Sim, querida. Você deve. — mamãe suspira virando-se para Clarice. — Diga olá.
— Olá, Clarice. — minha irmã mais nova sorri, fazendo suas enormes bochechas esmagarem seus pequenos olhos inchados pelo sono. Aperto os punhos ao lado do corpo.
— Olá Frey. — Clarice sorri. — É um prazer finalmente con-
Clarice não consegue terminar sua frase. Mamãe a interrompe dizendo para papai que dê um jeito em toda a palhaçada antes dela conseguir dizer algo, e sai carregando sua pequena peça preciosa e inocente para longe de toda aquela nova podridão em nossas vidas.
Sento-me na pequena poltrona vermelha, e esfrego as mãos no rosto. Conheço Clarice a quase um ano. Ela era apenas a garota que conhecia Emily e havia andado com Alison. A mesma que foi até o hospital e conversou comigo sobre o quanto se arrependia por tudo, que estava em uma fase sombria e que não podia imaginar que se deixaria ser dominada por Alison e Joan.
Eu a conhecia, e nada nela parecia fazer sentido agora. Era como se nunca houvéssemos nos visto antes, como se ela fosse uma estranha me perguntando as horas.
— Como pode ter certeza que ela é sua filha? — questiono, mesmo que não seja preciso questionar o que está em nossas frentes. Eles se parecem. — Pediu um teste de DNA?
— Não é preciso — papai suspira antes de tomar um gole de seu whisky. — Ela é minha filha.
— Como pode ter tanta certeza?! — aperto os dentes. — Já aconteceu antes. — relembro.
— Carter... — Tom Grayson suspira, apertando os olhos. — Desta vez é diferente, filho.
— Diferente como?! — berro, batendo nos braços na poltrona. — Como pode ser diferente?
— Porque ela é filha da Ruth. — é Barbara quem dá a resposta. — Você se lembra da Ruth, Carter? A mexicana que costumava te dar doces escondido da mamãe? — os olhos azuis da minha irmã me encaram com sarcasmo. Separo os lábios. — Pois é. Ela é a mãe de Clarice.
— Eu sabia — sussurro, passando as mãos no rosto. — Eu sempre soube!
Na época éramos somente Barbara e eu. Charlotte viajava muito a trabalho, o que significava que o nosso pai passava boa parte do tempo conosco. Eu era mais muito jovem, por volta dos cinco anos, quando tive o infortúnio de acordar no meio da noite com saudades da minha mãe.
Naquela época qualquer coisa me fazia ter saudades dela, e então o meu pai cuidava de mim e ficava vendo tevê até que meu choro cessasse ou eu caísse no sono. Era o que eu estava procurando quando resolvi sair da cama para ficar com o meu pai, colo para dormir ou chorar.
Naquela noite as luzes estavam apagadas. Ele não estava sentado no sofá da sala com a tevê ligada como de costume, e isso me fez seguir para seu escritório sem pensar duas vezes.
O meu plano era ficar lá lendo algum de seus livros, mesmo que não soubesse ler ainda, até que ele voltasse e ligasse a tevê para ver algum desenho repetido comigo.
Mas ao invés de uma sala cheia de livros, ao invés de qualquer outra cena que deveria estar naquele espaço de madeira, existia um homem sobre uma mulher. O meu pai. E Ruth, a babá.
Papai me viu naquela noite. Ele correu até a porta, me agarrou pelo braço enquanto arrumava a calça e me levou para cama repetindo que tudo não passava de um sonho, que eu estava dormindo. Quis saber o porquê ele estava sobre Ruth. Ela devia estar doente, porque já havia o visto em cima da mamãe daquela maneira e ele havia me dito que estava a ajudando, que ela estava passando mal.
Eu tinha apenas cinco anos. Não fazia ideia de como o sexo funcionava, mas acreditei em suas palavras quando ele me disse que nada do que eu estava perguntando fazia sentido. Acreditei quando o meu pai me disse que eu estava sonhando. Acredite nele, pois era apenas uma criança boba com sono, que acreditava em tudo o que o pai dizia e com saudades da mãe.
O que um garoto de cinco anos poderia ter feito? Ter batido o pé e ter citado todas as palavras escritas no dicionário para explicar o que era uma traição? Eu deveria ter contado o que havia ouvido e visto na tevê do segurança sem querer sobre os adultos fazem coisas que as crianças não podem fazem? Deveria mesmo ter continuado acordado e desconfiado dele e de Ruth?
Não. Eu não podia fazer nada daquilo, pois ele era meu pai e pais nunca mentem. Ou pelo menos era o que costumavam dizer quando eu tinha cinco anos. Era no que eu acreditava.
— Eu descobri através de um projeto de etnias — o timbre trêmulo de Clarice me faz erguer os olhos. — Deveríamos mapear os nossos ancestrais através do nosso DNA. Foi quando a professora percebeu que seria impossível Bart Campbell ser meu pai. Ele já havia sido aluno daquele colégio, já havia feito o mesmo projeto. — a garota suspira abanando os ombros. Pisco, sem entender quando aquela conversa havia começado. — Eles tinham o DNA dele, tinham o DNA de todos os pais que haviam sido alunos, e não éramos compatíveis.
— Esses colégios modernos e seus projetos com sangue. — papai indaga com sua carga habitual de sarcasmo, o que me faz apertar os punhos ao lado do corpo para não gritar com ele.
— Quando foi isso? — Barbara trinca os dentes, o ignorando completamente. Passo os olhos de Clarice até Barbara, de Barbara até Clarice. Se elas tivessem o mesmo tom de cabelo poderiam ser gêmeas idênticas ou coisa do tipo. Elas são assustadoramente parecidas.
Os nossos avós sempre nós falaram o quanto Charlotte deu sorte por achar “crias” tão parecidas com ela e Tom. Eles estavam sempre falando o quanto Frey tinha a estrutura óssea facial parecida com a do nosso tio Andy. E estavam constantemente nós fazendo perceber o quanto Barbara se parecia com o nosso pai, com seu nariz pequeno e seus olhos azuis. Eles eram iguais.
Já eu me parecia com Charlotte. Tínhamos o mesmo tom de cabelo e olhos, o mesmo modo de coçar o olho. Ás vezes até riamos de modo parecido. Éramos a família com mais semelhanças de todas, e sequer dividíamos o mesmo DNA. Agora não parecemos mais.
Nesse momento, Clarice Campbell é a mais parecida com Tom. Agora é ela quem parece ter a estrutura óssea facial idêntica à do tio Andy. Era ela quem tinha os olhos azuis, nariz pequeno, sardas sobre as bochechas e cabelo castanho. Ela era a cópia de todos os Grayson.
— Eu tinha quatorze anos quando descobri que Bart não podia ser meu pai — a garota responde sem tirar os olhos do meu pai. Do nosso pai. Do pai dela. —, mas foi apenas a doze meses que descobri sobre você, Tom. — Clarice explica com um sorriso pequeno nos lábios. — Eu juro.
— Doze meses? — minha voz sai antes do raciocínio. — O que houve em doze meses? O que mudou para que resolvesse vir atrás do tempo perdido?
— Você faz tantas perguntas, Carter. Porque precisa fazer um interrogatório? — papai reclama mais uma vez, e eu o ignora. — Clarice, não precisa responder se não quiser, querida.
— Minha mãe morreu — a garota responde sem muitos rodeios, e papai rola os olhos. Papai odeia crianças teimosas. Ele odeia mais ainda que suas crianças sejam teimosas. Ela coloca a mão no bolso e puxa um papel. —, e Bart resolveu que era hora de me dar algumas respostas sobre o meu pai. — ela gagueja enquanto abre o envelope. — É uma carta.
— Do Tom — Barbara responde a pergunta não feita. — Para sua mãe.
— E é por isso que não preciso de um teste de DNA para saber que estou em frente ao meu pai.
— Porque ele sempre soube a respeito de você, não é? Não é o que diz na carta?! — minha irmã trinca os dentes nas últimas palavras. A cabeça cacheada de Clarice se move confirmando o chute perfeito da minha irmã maquiavélica e abalada pelas grandes novidades. Meu corpo parecer afundar novamente nos dias ruins, onde tudo o que sentia era angustia e desespero. Mamãe ficaria devastada. Sento-me na poltrona novamente. Ela ficaria arrasada. — Porra, pai!
— Eu sei exatamente como parece — papai finalmente usa sua voz mansa. Aquela voz que ele geralmente usava para explicar o porquê teria que passar dois meses longe de casa, o porquê deveríamos cuidar da mamãe e sermos bons com ela. A mesma voz que me confortava à noite, e que agora parecia não fazer mais sentido. Parecia estar mentindo. —, mas não é bem assim, Barbara. Se ler a carta vai soar como se eu soubesse, mas não sabia.
— Ah Deus! — minha irmã bufa empurrando-o para longe. — Você vai mentir agora? Depois de ter dito que não era preciso um teste de DNA?! — ela pergunta aos gritos. Aperto os polegares sobre meus olhos. Quero voltar ao hospital. Penso. Quero voltar ao hospital e esquecer que vim para casa, quero esquecer e Clarice e Ruth. — Ela tem provas, pai.
— Não são provas. — papai bufa tão alto quanto ela. Ele suspira daquele modo melancólico e manipulador de sempre, e caminha de volta até seu copo de whisky. — Eu sabia que Ruth havia tido uma filha, mas não sabia que ela era minha filha. Sempre que perguntava recebia não como resposta, então posso responder da mesma maneira — ela dá de ombros, e prossegue: — Não. Eu não sabia que a garota, Clarice, era minha filha. Não até que ela entrou nessa casa alegando que sim.
O silêncio esmagador se arrasta novamente para o ambiente, e a sensação de soterramento por todas aquelas informações me faz pensar em Emily. Ela estava no hospital naquele exato momento, talvez estivesse dormindo com a intenção de acordar desta vez, e talvez estivesse aliviada por saber que não existiam mais avalanches perto dela ou de qualquer um que conhecia.
Ela estava aliviada por eu finalmente ter voltado ao meu estado calmo e normal de adolescente de dezessete anos ao invés de estar afundando naquele imenso mar desconhecido que me deixava assustado. Prometo que as coisas vão se acalmar agora. Tudo vai dar certo. Foram suas exatas palavras. Ela estava falando sobre as fases ruins terem passado, mas estava errada. Emily estava errada. As coisas não se acalmariam, e nada daria certo. Não graças a Clarice.
— Vocês precisam compreender — Tom suspira chamando nossa atenção. — Eu era jovem, a mãe de vocês estava sempre trabalhando! — sua explicação faz com que minha vontade de socá-lo aumente. — Sei que não justifica, mas esse foi o problema. Foi o meu errado. Um erro bobo que ficou no passado depois daquele dia. — ele vocifera. — Mandei Ruth embora, voltei a ser o bom marido que sempre fui e nossa família viveu bem por todos esses anos.
— Você é patético. — Barbara rosna apertando as mãos ao redor da cabeça.
— Não podem me odiar mais do que me odeio nesse momento por fazê-la sofrer — Tom Grayson rebate apontando seu dedo trêmulo para sua filha mais velha. —, mas amo a mãe de vocês e preciso que me entendam para que ela possa se sentir bem o suficiente para me entender. Ou para pelo menos me deixar explicar tudo o que houve e o que está havendo.
Ergo os olhos até os seus. Azuis. Azuis perfeitos como os de Clarice.
— Não pode estar falando sério. — enrugo o cenho. — Você não pode estar falando sério, pai!
— Carter... — papai suspira balançando seu copo cheio.
Ele estava. Tom estava falando sério quando pedia que o entendêssemos para que Charlotte pudesse entendê-lo. Bufo, e mordo o indicador antes que voe em seu pescoço.
Fazia sentido. Charlotte o perdoaria se o perdoássemos. Ela faria isso porque os filhos estariam pedindo, e ele sabia disso. Ele sabia que se ficássemos ao seu lado tudo ficaria bem.
— Mamãe sofreu por seis anos antes de conseguir a guarda da Barbara. — indago, encarando seu rosto impresso na imagem de Clarice Campbell. — Ela perdeu três bebês antes dela, e ficou catatônica por não poder engravidar. Por não poder te dar a família que sempre quis.
— Acha que não sei disso?! — meu pai grita arremessando o copo contra a parede. Clarice, que até então não conhecia esse seu lado agressivo, pula assustada e aperta os braços em torno do corpo. Aperto os dentes, e serro os punhos. — Acha que não sofri também, Carter?
— Se tivesse sofrido não teria a traído com a babá dos seus filhos! — Barbara grita tão alto quanto ele. — Ela estava sofrendo, pai. A mamãe estava sofrendo antes de mim porque não conseguia te dar filhos e você a traiu na primeira chance que teve.
— A única coisa que ela sempre quis foi te dar filhos — relembro fazendo-o me encarar. Esfrego as mãos no rosto. — Já parou para pensar o porquê de nós três existimos? O porque somos tão parecidos com a SUA família e não com a dela? — enrugo o cenho. — És a resposta, pai: ela queria te dar o que os pais chamam de reflexo em suas crias. Ela pensou você quando adotou cada um de nós — grito. —, e tudo o que deu em troca foi uma maldita bastardinha!
— Meus Deus — a voz sorrateira e assustada de Clarice soa sobre nossas respirações ofegantes e copos voadores. Rio, sem humor. — Vocês são horríveis. Eu só queria conhecer o meu pai, e olhe no que transformaram esse momento. É um grande show de horrores.
— Show de horrores?! — Barbara repete aos risos. Encaro aqueles olhos tão azuis de Clarice a fim de enxergar a sua alma por detrás de todas aquelas características familiares, a fim de chegar até o lugar onde ela guarda a necessidade de conhecer o seu pai perfeito, pois talvez possa ajuda-la se chegar à raiz daquele sentimento. Talvez eu possa arrancá-lo de seu peito antes que ele a traia como estava traindo a mim e as minhas irmãs. Antes que ele a machuque como estava machucando a minha mãe. — Você não vê, não é mesmo? — minha irmã questiona com as mãos na cintura, e meu pai chama seu nome como uma advertência. — É isso que nós somos, querida. Um show bizarro e horrendo. O pai que você tanto quis? Bem, ele é a atração principal dessa festa — ela sorri se virando para nosso pai. —, ele é o monstro preso na jaula ao lado.
E então, o sentimento que ronda Clarice desaparece da mesma maneira como ela apareceu em nossas vidas, ele desparece rápido, mas dolorosamente. Ela sabe. Em algum lugar dentro do seu cérebro ela sabe que o que Barbara estava dizendo era real. Tom era a peça principal do show.
Ele usou sua esposa, jogou suas trapaças sobre as frustrações ela, se deitou com a empregada e deu a ela tudo o que a mulher a qual jurou amar queria. Ele deu tudo o que não daria a Charlotte, e no processo, Tom tirou tudo o que Clarice Campbell poderia querer, um pai.
Ela não queria conhece-lo. Não verdadeiro Tom Grayson. Clarice queria conhecer o Tom que escreveu uma carta sobre o efeito do álcool, o cara que ela pensava ter feito piqueniques e ter levado sua mãe para passear quando a esposa não estava por perto. A fantasia, não ele.
É uma pena que sua mãe não tenha vivido tempo suficiente para lhe poupar da presença dele por mais tempo. E era uma pena que ela precise ter o coração partido tão rápido por aquela família.
— Isso não é verdade. — papai resmunga para algo que Barbara lhe diz, e Clarice separa seus lábios em uma careta assustada. — Não é igual à quando-
— A quando você bebia demais e corria pela casa gritando o quanto a mamãe era podre por não poder te dar um filho legítimos? — minha irmã grita com lágrimas em seus grandes olhos azuis. E é só então que noto. Clarice não havia sido a única a ser atingida pela necessidade de conhecer o pai. Barbara a sentiu também. A muito tempo atrás, quando era só uma garotinha louca para saber seu sobrenome verdadeiro. Green. — Quero dizer, o show de horrores não começou nas gritarias, certo? — Barbara funga. — Eles começaram nas noites fora de casa, depois nas surras sem nexo nos seus filhos, depois nas surras que dava na sua esposa. — ela sorri se virando para Clarice. — E agora o show está na sua nova filha. A aberração da traição.
— Eu não sabia. — Clarice Campbell sussurra, os olhos tão arregalados que parecem três vezes maiores e mais azuis do que o normal. Não percebo que estou chorando até que um soluço espaça dos meus lábios e o meu peito dói pela sensação. A garota de cabelos escuros me encara.
— É melhor você ir embora agora, Clarice. — indago, limpando os olhos.
— Não é você quem diz! — Tom estala pegando outro copo. — É Clarice quem decide que horas vai embora, afinal ela está aqui para conhecer o pai. Ela tem direito de ficar.
— É isso que vai dizer a Frey quando ela tentar conhecer o pai biológico? — a voz rouca da minha mãe soa me fazendo levantar. Os meus joelhos tremem quando seus olhos encontram os meus e rolam até o rosto fino de Clarice. — Vai dizer que ela tem o direito de ficar até resolver ir embora? — Charlotte questiona adentrando a sala. — Vai deixar que a nossa filha fique cercada por gente gritando sobre as coisas terríveis que seu pai fazia quando bêbado?
— Char-Charlotte... — Tom gagueja largando o corpo em cima da mesa de vidro. Ele raspa as mãos no cabelo castanho, sorri sem graça, move o corpo de uma maneira estranha e fecha os punhos. Tom havia sido um péssimo pai um dia. Havia sido um péssimo marido também.
Ruth não havia sido a primeira, ela havia sido apenas a primeira após a minha adoção. Após a existência de crianças vinculadas ao laço matrimonial que Charlotte Kings e Tom Grayson possuíam. Antes Tom era mesquinho, rude, agressivo. Isso mudou quando eles adotaram Barbara, uma garotinha de três anos. Com a chegada dela, Tom se tornou morno, amigável, passional. Com a minha chegada, ele voltou a ser o vulcão que costumava ser.
Pelo menos era o que os meus avôs viviam me dizendo quando me pegavam fazendo algo ruim. Você não pode desobedecer Carter, não queremos que seu pai volte aos velhos hábitos. Eles diziam, e eu não conseguia pensar em quais eram seus velhos hábitos. Havia saído dos braços da minha mãe biológica muito cedo, não podia ter memorias sobre as bebedeiras. Não com Barbara ou mamãe. Mas sabia da existência deles, de como mamãe vivia relembrando que nada era culpa nossa. Que ele estava apenas chateado com outras coisas. Não conosco.
Foi a primeira vez que tive contato com mentiras. Eu tinha dois anos de idade, e estava com minha primeira lembrança de Tom: um machucado muito, muito feio no pulso.
Mas não era só a respeito de Tom e o álcool. Era a respeito de sua família e da pressão que eles exerciam sobre mamãe não conseguir engravidar. Era de onde vinha a nossa existência.
Então ele bebida, gritava e chutava. Foi esse o pai que tive por quase três anos da minha vida. Era esse o marido que Charlotte King precisava trancar no banheiro para que ele não a machucasse, ou machucasse os meus próprios filhos por estar transtornado. Era o Tom que Clarice teria conhecido se houvesse o descoberto cedo demais. Era o Tom sombrio.
— Me responda, Tom! — mamãe grita me trazendo de volta a superfície. — É o que dirá a sua filha mais nova quando ela quiser saber sobre os pais biológicos? — ela questiona, brava.
— Eu nunca quis trazer os nossos filhos para isso, querida. Não sou mais esse tipo de homem e você sabe disso. Sabe que nossa família me salvou e... — ele suspira. — É tudo passado, Char.
— Um passado que pertence a sua família, Tom. Que pertence a você! — Charlotte resmunga cruzando os braços. — Que precisa pertencer à sua filha para que ela entenda quem você foi, quem você é e quem poderá ser em um futuro próximo. — mamãe vocifera. — Então não ouse usar esse tom, não ouse se fingir e não ouse, em hipótese alguma, dizer algo aos meus filhos por eles estarem sendo sinceros. Pais deveriam esperar que seus filhos fizessem a coisa certa, e é isso o que eles estão fazendo — ela rosna. — Eles estão fazendo a coisa certa.
— Charlotte...
— Eu não a quero na minha casa. — minha mãe o interrompe erguendo a mão. Ela se vira para Clarice. — Você pode não ter culpa do que houve entre o meu marido e a sua mãe, mas não a quero perto da minha família, entendeu? — Charlotte indaga com os dentes apertados. E definitivamente, entre todas as ondas produzidas pela família do meu pai, Clarice não está pronta para a onda criada por Charlotte Grayson. Ela nunca estaria. — Se você quer conhece-lo, vá em frente. Conheça-o. mas não ouse voltar a minha casa nunca mais, ou eu juro que irei fazer com você o que deveria ter feito com sua mãe quando descobri a grande vigarista e mentirosa que ela era. — mamãe rosna, abanando o dedo para Clarice. Paro de respirar. — Vá embora!

Emily ParkerWhere stories live. Discover now