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        ... BOOM!
Todo mundo ficou em silêncio por um instante, até que todos conseguiram compreender o que havia acabado de acontecer. Um carro veio em direção ao colégio, subiu pelo gramado e só parou quando encontrou a parede do laboratório, que ficava a poucos metros de onde todos os alunos despreocupados estavam matando tempo. Todos saíram correndo em direção ao acidente. Os gritos iam de “será que ele morreu?” para “ai meu deus, chamem uma ambulância”. Alison, que estava sendo inutilmente abraçada pela minha irmã, chorava como se houvesse acabado de perder alguém de sua família. A alguns passos das duas, Alice gritava para que o pessoal abrisse espaço e ligasse para a ambulância. Alice é uma brasileira conhecia por ser uma Silva da Silva. Ela é meia-irmã de Patric, namorado de Joana, e é uma das amigas mais intimas de Barbara Grayson, irmã mais velha de Carter. PENSE NO ACIDENTE, PARE DE CUIDAR DA VIDA DOS OUTROS. O fato é que o motorista do carro azul marinho havia batido na parede sul do laboratório, e uma fumaça preta poluía toda a sua volta fazendo com que nossas visões ficassem nubladas de lágrimas. A porta do motorista se abriu, um grupo de meninas soltou um gritinho angustiado e Patric correu, juntamente com Carter, em direção à garota que saiu do carro destruído. A menina cambaleou para frente, mas Patric foi ágil o suficiente para segura-la a tempo. Ele a carregou nos braços e correu em direção à entrada do colégio. Quando os três atravessaram o curto espaço entre mim, Jay e a porta; consegui ver a mancha de sangue escorrendo de seu nariz torto. Meu estomago se revirou por causa do corte e do sangue.
— É realmente o começo do ano letivo do Augustus — Jay riu baixinho. Encarei seu rosto risonho com minha melhor cara perplexa. A menina poderia ter morrido, mas Jay estava rindo por causa disso. Ele rola os olhos e agarra minha mão. — Vamos embora de uma vez, não quero ficar para ver o drama do diretor Lewis quando ele ver o laboratório. — ele diz me arrastando para longe da lanchonete, para longe do acidente e para longe da garota machucada.
— Ela poderia ter morrido. — reclamo quando finalmente entramos em seu quarto.
— Não seja dramática Ems, ela não teria chances de morrer no St. Augustus — Jay ri se jogando sobre o puff verde. Suspiro. Por mais que tenha ficado irritada pelo comentário, tenho que admitir que ele têm razão. O St. Augustus é conhecido por ser um dos colégios que mais reporta acidentes em toda a Chicago. Não que ele seja um colégio ruim, muito menos que sem segurança ou coisa do tipo, mas ele é simplesmente um lugar azarado para se estudar. Assinto sem muita vontade. — St. Augustus é como o navio do barba negra, entende? Ele sempre vai afundar. — Jay ri empurrando os pés úmidos em mim. — E você ainda queria ficar vendo.
— Não seja tão idiota, não se trata de ficar olhando, se trata de ter certeza que aquela garota estava bem — explico empurrando seus pés. — Ela estava sangrando, você viu?
— Vi — Jay balbucia sem tirar os olhos da tela plana. — Mas isso não é nada demais, todo mundo sangra Ems. — meu melhor amigo replica com um sorrisinho. — É disso que somos feitos, sabia? 90% sangue e 10% água... Ou algo do tipo.
— Como você pode ser bom em biologia, se sequer sabe a porcentagem de água e sangue que temos no nosso corpo? — questiono com o cenho enrugado, e ele dá de ombros. Abano a cabeça. — Bem... De qualquer maneira ela poderia ter morrido.
— Que bom que não morreu — ele estala. Estreito os olhos. Odeio esse seu lado nerd do mal porque ele parece um daqueles idiotas que andam com Joan. — Pense pelo lado positivo da coisa toda, Ems — Jay diz em falsa comoção. — Ela vai ter uma nota no jornal do colégio.
— Tenho 110% de certeza que ela vai ser a página principal — gemo ao lembrar dos flashes que pipocavam como milho na panela quente quando Patric carregou a desconhecida para dentro do colégio. É irritante que o jornal do colégio tenha virado uma página de fofocas e polemicas. O diretor Lewis havia iniciado a ideia do jornal para deixar os alunos por dentro das novidades e mudanças, mas ao invés de informar sobre qual assunto cairia na prova de matemática eles começaram a soltas bombas atrás de bombas. Como a matéria sobre as garotas lésbicas do terceiro ano, ou sobre como Mattew Rick burlou seu teste antidoping. Ou como no inicio das férias de inverno, quando eles publicaram EMILY DO PRIMEIRO ANO TEM UMA DOENÇA VENÉREA. É claro que ninguém se tocou que a Emily em questão era eu, e também nunca tive nenhuma doença venérea, mas ninguém se importou em perguntar. A vibração do controle em minhas mãos me faz olhar para tela. — Quê?! Isso é roubo!
— Isso que dá ficar distraída — meu melhor amigo ri acertando dois tiros no meu soldado. O controle vibra com mais força em minhas mãos. — Eu vou massacrar você...
— Não seja ridículo, quem nasceu para ser Jay Jensen nunca vai ser Emily Parker no vídeo game — zombo, dando dois tiros num dos soldados dele. O final da tarde se resume entre vídeo game, chá de limão com alecrim, biscoitos de leite e risos. São nesses momentos de paz ao lado de Jay que sempre me dou conta de que a mudança para Chicago me trouxe algo bom, afinal eu não tinha sequer um amigo em Nova York e agora tenho Jay para me fazer sorrir. Jay é o meu ponto de equilíbrio, quando as coisas estão ruins monto na minha bicicleta e subo todo o quarteirão para passar à tarde com ele. Gosto de como Jay me faz bem, gosto dos risos que ele arranca de mim e do jeito como confio nele para guardar os meus segredos. Talvez ele seja aquele tipo de amigo para a vida toda. — Quando os seus pais voltam?
— Final do mês  — ele suspira rabugento. O Sr. e Sra. Jensen são duas pessoas maravilhosas. Eles são professores de ciência da universidade de Chicago e por isso quase não param em casa, mas quando param tratam o filho como se fosse o rei do mundo. O tratam como se ele fosse o seu bem mais preciosos, porque é isso que Jay era para seus pais: o bem mais precioso de todos. Já me peguei com inveja do modo como seus pais o tratam, pois secretamente desejava que eles fossem os meus pais. Sua mãe nutre um carinho e atenção tão grande por ele que chega a deixar a minha na lanterninha. — Eles vão me levar naquele novo restaurante chinês. Você quer ir?
— Depende — sussurro beliscando o meu lábio. Jay me encara a espera de mais informação, mas não posso dizer. — É um lance de família. — murmuro sem nenhuma vontade. Todo final de mês tínhamos consulta numa espécie de terapeuta de família. Meus pais acreditavam que se fossemos as consultas, como uma família, iriamos conseguir conviver uns com os outros. Não existe nada por detrás, não é o fato do meu pai ter voltado a passar muito tempo na academia, muito menos as alfinetadas de Joana nos jantares, é apenas a minha mãe querendo ter algum assunto para discutir com todos. É apenas a minha mãe tentando fingir que tudo está bem.
— Está bem — Jay indaga no mesmo tom baixinho, e arruma seus óculos quadrados de armação verde. Sorrio de lado para sua falsa compreensão. Ele pode ser o meu melhor amigo, mas não sabe mentir muito bem e sei disso sempre que ele tenta ignorar os meus silenciosos constrangedores e minha falta de detalhes. O silêncio nos consome, e eu fixo meus olhos sobre ele. Jay tem uma beleza muito peculiar. Sempre ressaltei o fato de ele ter belos olhos castanhos, maxilar quadrado, altura suficiente para entrar no time de basquete e lábios vermelhos como uma única rosa no meio de uma cidade coberta de neve. Acho que ele e nem ninguém consegue ver o quanto de beleza reside em seu ser, mas eu vejo. Vejo sempre que o pego sorrindo ou quando ele franze a testa com raiva, ou até mesmo quando está lendo e tem aquela expressão calma. Ele tem uma beleza exótica, mas chega a ser natural. Sua personalidade nerd ofusca sua beleza, e é por isso que as garotas geralmente ignoram seus cachos castanhos, seus ombros largos e seu sorriso perfeito.
— O que? — ele me pega desprevenida. Arregalo os olhos.
— O que? — estalo de volta. Jay deixa um risinho suspeito escapar, e eu endureço os meus ombros como quem não quer nada. Ele continua com seu sorrisinho sarcástico, o que me faz querer enfiar a cabeça na terra. — Ainda estou pensando naquela garota — reclamo para quebrar o clima esquisito. Ele rola os olhos. — É serio Jay, ela poderia ter morrido. Ou poderia ter atingido alguma substancia inflamável e ter mandado todos nós para a morte súbita.
— Bem, ela não morreu — Jay relembra. — E mesmo que houvesse atingido algo inflamável, eu não estaria perto o suficiente para ser atingido. Não iria sofrer nenhum arranhão.
— Você não pode estar falando sério — resmungo, ficando em pé em dois minutos. Ele sorri com os olhos. — Mesmo que não estivéssemos perto, outras pessoas estavam... Joan estava praticamente ao lado do laboratório com o grupo dela.
— Com o grupo ou com o Carter Grayson? — meu melhor amigo alfinetou.
— Eu não gosto dele! — rosno, abanando as mãos sobre a cabeça.
— Claro que não Emily, claro que não — Jay abana as mãos em rendição. — De qualquer modo não aconteceu nada demais. Ela bate o carro, desmaiou, foi carregava e vai ter a cara estampando o jornal amanhã. Todos saem ganhando de algum jeito.
— Você não sabe mesmo lidar com essas coisas — rio sem muito humor.
— Sorte sua que não estava aqui quando o meu tio Bartolomeu morreu — ele admite se levantando. —Todos estavam chorando e eu estava... — Jay sorri sobre sua lembrança, recolhe as xicaras de chá e me diz: — Estava assando o meu peixinho dourado.
— Wow, você é um poço de sentimentos Jay Jensen — balbucio sentindo um arrepio percorrer minha espinha. Depois de muito reclamar, rir, jogar mais jogos de tiros, comer todo o estoque de bolacha e ficar com dor de dente resolvi que era hora de voltar para casa. Do momento em que cheguei em casa até o instante em que fui tomar banho ouvi Joan dizer como todos estavam falando sobre a garota do assistente, e sobre como Alison estava abalada por causa daquilo. Rolei os olhos mais vezes do que podia enquanto ouvia minha mãe se lamentar por Alison Prescott e suas lágrimas falsas. O secador faz um barulho alto o suficiente para abafar as vozes no andar de baixo, e quando consigo sustenta-lo no pulso levo um susto com o reflexo embaçado da minha irmã. Viro-me para encará-la com a maior cara de susto que posso formar. Joana se senta em minha cama. Por favor, por favor, não implique comigo há essa hora. Rezo.
— O que você estava fazendo hoje? — ela soa calma e esquisita.
— Como assim? — pergunto baixinho.
— Depois do acidente — Joan indaga cruzando as pernas. — Onde você estava?
— Com o Jay — respondo ainda mais baixo. Ela solta um “hm” e vasculha meu quarto com seus olhos pintados de rosa. — Aconteceu algo?
— Porque precisa estar acontecendo algo para que eu queira conversar com a minha querida irmãzinha? — ela pergunta visivelmente irritada. Mordo os lábios. Agora você deve está pensando “ela tem medo da sua irmã?”, e a resposta é um grande não. Eu não tenho medo de Joana Parker... Eu tenho pavor. Ela é a pior irmã que alguém poderia ter na face da terra, e essa carinha fofa que ela tem montada me parece uma armadilha das grandes. Meu coração bate forte, minha garganta parece se fechar e meu cérebro fica a espera de alguma pegadinha de mau gosto. Joan, como gosta de ser chamada, já foi uma boa irmã. Quando tínhamos seis anos ela era a melhor amiga que eu podia ter. Tudo isso mudou aos doze, quando ela deu o primeiro beijo e seus seios deram um pulo em seus sutiãs. Agora ela é o meu pesadelo em uma estrutura alta, magra, loira e popular. Minha irmã dobra suas pernas mais uma vez. — Você sabe que o Carter está na sua turma não sabe? — ela meio que pergunta e afirma. Enrugo o cenho.
— Sei? — é claro que sei, mas tenho medo de confirmar. — Acho que sim. Não notei.
— Sim, ele está — ela bufa chateada. — O fato é que preciso que me faça um pequeno favor muito importante, Emily — explica, sem explicar nada. Um risinho estridente escapa dos meus lábios e Joan me fita com seus olhos serrados. Congelo. — Estou falando sério.
— Er... Ok — emito um som estranho, mas na verdade queria ter dito NÃO MESMO, NEM PENSEE EM MEU PEDIR ALGO SUA VACA. Seu pequeno sorriso se forma e sei que não irei gostar do que vem a seguir. Trago a saliva. — Como eu posso te ajudar Joan?
— Eu sabia que toparia — minha irmã bate as mãos como uma daquelas garotas mimadas de filmes de comedia. Que opção eu tinha além de aceitar ou aceitar? Quero soltar, mas me mantenho calada, pois não quero lhe dar outro motivo para me fazer viver um inferno na terra. Minha irmã mira meu rosto com intensidade. — Preciso que fique de olho nele por mim.
— Oi?! — empurro meus óculos no meu rosto, pois não sei se estou mesmo olhando para minha irmã ou uma ilusão feita pela minha visão ruim. Era minha irmã. — Porque eu faria isso?
— Porque senão — Joan sorri de orelha a orelha. — Eu vou ter de contar ao papai que foi você quem roubou o cartão de credito dele nas férias.
— Mas não fui... — e antes que a minha língua bata todas as vogais, meu cérebro grita PIRANHA. Papai me acordou numa manhã de sábado perguntando se eu havia visto seu cartão de crédito, eu disse que não, mas quando a conta chegou existia uma grande lista de compras. No momento eu não percebi, mas agora posso me lembrar de alguns itens da lista, itens esses que eu havia recebido pelo ebay um mês depois do roubo do cartão. — Você é mesmo uma vaca, Joan — gemo, me sentando na cadeira da penteadeira.
— E você é ridícula o suficiente para continuar vivendo — Joan rebate sem dar bola para o palavrão pejorativo que usei para me referir a ela. Sinceramente, acho que ela pensa que “vaca” é um elogio. Como na Índia, lá as vacas são sagradas... Graças a Deus que estamos na América e podemos atirar nelas. Apertos os dedos sobre o tecido do meu pijama. — Enfim, você pode fazer esse favor a sua irmã, não pode? — sua pergunta tinha um tom peculiar de: você vai fazer de qualquer modo. Meu estômago se revira a cada passo que ela dá em minha direção. Aperto os lábios. — Você vai ser invisível, mas vai ficar atenta a todos os passos que ele der dentro da sala de aula. Alison quer um relatório todos os dias. — Joan sorri dando petelecos nos meus cabelos. Mordo as bochechas. — E, por favor, pare de usar essas coisas que você chama de roupa — Joan move uma sobrancelha em desdém. — As pessoas sabem que fomos geradas pela mesma mulher, não pega bem ter você andando como uma mendiga.
O sorriso de vitória da minha irmã me deixa angustiava, com um pouco de vontade de chorar e com raiva. Ela bate numa das bonecas sobre a minha cômoda, que cai se quebrando em pedacinhos, e bate a porta com força. Aperto os olhos sentindo todo o meu corpo doer.
Eu odeio a minha vida. Odeio.

Emily ParkerOnde histórias criam vida. Descubra agora