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Acho que a água quente está fazendo com que meus ouvidos fiquem surdos. Eu não sei se existe lógica nesse pensamento, mas talvez seja o vapor que me deixe com esse zumbido estranho nos ouvidos, ou talvez, quem sabe, seja o fato de eu estar a tanto tempo embaixo d'água. Além dos ouvidos surdos, a água quente irrita meus olhos fazendo com que eu pisque a cada um segundo. O teto branco do banheiro parece mais distante agora, e as batidas na porta são tão distantes quanto ele. A minha vida é uma droga. As coisas não mudariam. Eu não conseguiria nada de relevante com a minha existência. Ninguém consegue nada de relevante quando se é uma azarada. Constatei isso no momento em que corri para o banheiro e afundei o meu corpo na banheira cheia, quando os meus olhos começaram a arder, quando o ar começou a faltar em meus pulmões. Você se levanta, olha para os lados e percebe que já não sofre mais. Agora tenho certeza,gammy estava falando sobre a morte. Ela estava falando sobre deixar esse mundo e partir para o próximo, estava falando sobre o mundo dos mortos. Quando fecho os olhos posso ouvir o bater do meu coração, talvez esse seja o efeito verdadeiro da água sobre nossas cabeças, ela amplifica os sons. Posso ouvir as pancadas na porta, o gotejar surdo da torneira próxima à banheira, as batidas lentas e maçantes do meu coração. E também posso ouvir o verso da canção que ecoa do meu celular. If you must die, remember you life. You are, you are all... You are all.
- Emily? - uma voz longa e sorrateira se embrenha nos meus ouvidos. - Você consegue me ouvir? - ela me pergunta com seu tom cansado. -Mamãe, ela acordou!
- Emily?! - a voz da minha mãe, essa reconheço por ter sempre aquele tom peculiar de VOCÊ NÃO DEVERIA COMER TANTO NA HORA DO JANTAR, me faz abrir os olhos. Ela está a alguns centímetros de mim, seus dedos traçam a pele fria do meu pulso me causando calafrios. - Você acordou - ela sorri com seus grandes dentes de coelhos. Quando eu era mais nova, com seis ou sete anos, costumava chamar a minha mãe de coelho saltitante. Ela achava ridículo, mas não me repreendia por isso. Ela sempre ria e fingia que não se importava por estar sendo chamada de coelho saltitante na frente das suas amigas, mas com o passar dos anos comecei a perceber que sua falta de irritação para o apelido ridículo não se dava ao seu amor pela sua pequena garotinha, mas sim pelo fato de que no fundo ela sabia que eu nunca teria um amigo para colocar um apelido estúpido como aquele. - Você se sente bem?

- Onde eu estou? - é a única coisa que meus lábios conseguem reproduzir, mesmo que meu cérebro esteja gritando QUE DOR É ESSA NO MEU BRAÇO?!
- Você está no hospital, Emily - é Joan, minha irmã do mal, quem responde. As pontas dos meus dedos formigam, e só então, quando olho para as mãos da minha mãe sobre meu pulso, é que percebo as ataduras em torno deles. Serro os olhos.
- Você se sente bem? - mamãe questiona antes mesmo que eu possa processar os meus pulsos amarrados. Seus dedos percorrem a pele do meu pulso até as minhas bochechas quentes. Abano a cabeça. - Sente alguma dor? - ela pergunta. -Fome? Sede?

- Você se lembra de algo? - Joan retruca sem tirar os olhos da tela do seu celular.
- Não seja irritante Joana, ela acabou de acordar- minha mãe briga.
- Só quis saber - minha irmã bufa, rolando os olhos. - Vai que ela se lembra de...
- Chega Joana! - mamãe estala entre os seus enormes dentes de coelho. AGORA VOLTE A SE PERGUNTAR O PORQUÊ DAS AMARRAS EMILY, o meu cérebro grita, mas antes que eu possa proferir as palavras à porta se abre relevando um homem vestido de branco. Ele deve ter em torno de trinta e cinco anos, seus cabelos são castanhos e suas mãos são frias sobre as minhas pálpebras móveis. Ele esfrega seus dedos macios e frios sobre meus olhos por um tempo, pede que eu siga a luz branca que me cega 50% da visão. Ele apaga a luz, mas não recolhe seus dedos gelados.
- Ficou com algum foco nos olhos? - sua voz rouca pergunta. Assinto. - Pisque algumas vezes...- ele manda, e eu obedeço. - Melhorou? Ainda existe algum foco de luz? - seu sorriso branquinho se torna ainda mais nítido para mim. Nego. -Ótimo.
- Então ela está bem? - minha mãe pergunta aflita.
- Vaso ruim não quebra - minha irmã ri sem tirar os olhos do celular. ESSA FRASE DEVERIA SER DITA PARA VOCÊ E NÃO PARA MIM, meu subconsciente grita e mostra os dentes para ela. Mamãe bufa. - É brincadeira!
- Tudo indica que ela está bem - o homem de tinta e cinco anos diz cautelosamente a minha mãe.- Os exames não indicam nenhuma anomalia no cérebro. Na verdade ela está ótima se for comparar pelo o que passou - ele diz com um sorriso voltado para mim. Aperto os lábios. PORQUE EU ESTOU EM UM HOSPITAL? - Ela ficou muito tempo embaixo d'água, e por isso pretendo deixá-lo mais uma noite em observação, mas os sinais vitais estão ótimos e a condição física também - o médico explica, enfiando as mãos nos grandes bolsos do jaleco. FIQUEI EMBAIXO D'ÁGUA? - E, se estiver tudo bem para a senhora, eu gostaria de remover as amarras ainda essa noite - seus olhos castanhos sorriem para mim, e eu sorrio de volta. Minha mãe me encara. - Acho que a senhorita Parker se sentirá melhor sem elas.
- O doutor não acha que... - mamãe pondera suas palavras. - Que é melhor, eu não sei, para a segurança dela... Er... - seus olhos azuis claros, exatamente como os meus e os de Joana, se contradizem com sua expressão constrangida. Seu rosto mostra uma mãe preocupada, seus olhos mostram uma mulher envergonhada. - Eu não acho prudente.
- Ela está bem - o homem repete com um tom mais firme. Ele não espera que minha mãe responda, apenas se aproxima da cama e desfaz o fecho das amarras. No segundo em que meus pulsos são soltos sinto o peso deles irem contra o colchão. O homem sorri de lado, segura sobre as pontinhas dos meus dedos quentes com seus longos dedos frios e move minhas mãos de um lado para o outro como uma marionete. Rio. - Vai sentir dormência por um tempo, mas é normal, garanto- ele explica. - Ficou numa mesma posição por mais de 48h.
- Mais de 48h? - eu pergunto surpresa.
- Acho melhor eu ir agora - o doutor, as letras costuradas em seu jaleco dizem Dr. Shumway, sorri e se levanta do colchão macio da minha cama de hospital. SUA CAMA DE HOSPITAL? Eu me repreendo aos gritos, gritos mentais, antes mesmo de perceber. O Dr. Shumway desaparece do quarto, e a espécie de alegria que eu sentia com sua presença desaparece em minutos. Afundo o corpo no colchão, puxo meus braços dormentes para cima do meu colo e tento mover os dedos. Acho que exatos quarenta minutos se passam, na verdade tento certeza, pois existe um relógio enorme bem á frente da minha cama, até que minha mãe resolve sair do quarto para fazer sabe Deus lá o que. Continuo a minha tentativa inútil de mover os dedos, mas parece que toda a sensibilidade que existia neles havia sido sugada por sanguessugas.
- O que aconteceu? - Joan pergunta me tirando do transe. Pisco lentamente, sem saber se ela estava falando comigo ou com algum amigo imaginário. Seus olhos se abrem imperceptivelmente para mim. Prendo a respiração. Ela está falando comigo.
- Eu não sei - indago baixinho. - Não era você, ou a mamãe, que deveria me dizer?
- Bem - Joana introduz com um tom muito sério.- Eu não sei o que houve.
- Se você não sabe, como eu, que fiquei 48h desacordada, poderia saber?
- Não seja uma sabichona aqui - ela estala com seu tom rude. Assinto. - Só estou dizendo que não sei, não porque não sei... - suas sobrancelhas se juntam, e quero rir pela confusão que ela mesma criou em seu cérebro com aquela frase. - O que estou tentando dizer é que a mamãe não me disse todos os detalhes, Emily - Joan rola os olhos. -Cheguei do colégio e você estava lá - minha irmã aponta para o chão, e mesmo que eu entenda a metáfora em seu gesto olho para o piso branco do quarto. - No chão, deitada sobre a mamãe, molhada da cabeça aos pés. Branca como um fantasma ou alguém que ficou anos embaixo d'água. Estava desmaiada.
- Eu desmaiei? Não me lembro de ter desmaiado- cochicho.
- Como você acha que alguém passa 48h desacordada? - Joana replica.
- Coma induzido, uma ov...
- Não seja sabichona Emily - minha irmã interrompe, estalando sua língua contra o céu da boca. Bufo. NÃO ESTOU SENDO, SÓ ESTOU EXPLICANDO. - Você estava desmaiada, a gente chamou a ambulância e o resto é história - ela explica, amarrando os cabelos loiros em um coque ridículo. Ela parece uma daquelas garotas de tumblr: perfeita e de cabelo liso. Ranjo os dentes. -Você tentou... - sua voz soa baixa, frágil e até mesmo piedosa. Arregalo os olhos.
- Não, não tentei - rosno, empurrando o corpo para cima. As ataduras brancas em torno dos meus pulsos fazem meu coração latejar. O CORAÇÃO NÃO LATEJA, EMILY. Lizzie, o lado inteligente do meu ser, me diz. Mas não me importo, pois meu coração estava latejando.
- Mamãe disse que você chegou em casa chorando- Joana pega em minhas mãos dormentes, seus dedos longos com unhas cor-de-rosa desfazem as ataduras. - Você subiu as escadas depressa, ela mal conseguiu te ver. Disse que foi como um raio caindo sobre um pobre coitado no meio da rua, rápido e violento - minha irmã trilha as voltas da atadura lentamente, e já sinto meus olhos transbordando em lágrimas. - Se trancada no banheiro. Ela estranhou a música alta, estranhou que o chuveiro não estivesse ligado - Joana dá um último puxão na aturada e ela se abre. - Ela precisou chamar o vizinho, ele arrombou a porta- minha irmã soa baixinho, tão baixo que sua voz parece não existir perto da barulheira que é meu coração. Os pontos pretos contra a palidez da minha pele chegavam a machucar os meus olhos.- Ela te encontrou submersa no sangue. - ela me diz com cautela. - Você tentou se matar, Emily.

Emily ParkerOnde histórias criam vida. Descubra agora