Narisa Osaton estava cansada.
Cansada de mentir. Cansada de esconder. Cansada de omitir. Simplesmente, cansada. Mas já fazia tanto tempo – tanto, tanto tempo – que aquela era a sua realidade, que não podia fazer nada além de continuar. Àquela altura, não existia mais volta.
Narisa estava observando o reflexo que a lua produzia nas altas janelas da biblioteca quando foi atingida por uma súbita vontade de desmaiar. Ela se apoiou na parede, fechando os olhos e respirando fundo inúmeras vezes até se recuperar. Aquilo estava acontecendo com uma frequência assustadora nos últimos dias, desde que soubera que não tinha conseguido manter sua promessa: Rebeca tinha descoberto Clanos, tinha visitado Clanos, e Narisa não poderia estar mais desesperada.
A simples presença da garota tinha revivido dezenas de memórias, lamentos e problemas. Se fechasse os olhos por um único segundo podia sentir o cheiro do sangue que escorria pelas escadas, ouvir as súplicas murmuradas que ecoavam pelo casarão, ver os corpos já sem vida caídos no carpete... O tempo não tinha dado conta de apagar nada daquilo – e possivelmente nunca daria. Algumas dores eram eternas, e a Sábia já tinha aceitado que teria de carregar aquele fardo enquanto vivesse.
Ela tocou o anel prateado em seu dedo anelar, respirando fundo.
Se você estivesse aqui...
Houve uma batida na porta da biblioteca antes que esta fosse aberta e a cabeça de Lorenzo surgisse pela fresta. Os cabelos encaracolados dele estavam mais emaranhados que o normal e os olhos azuis piscavam sonolentos. Narisa sentiu seu peito se aquecer apenas com a presença do garoto.
– O Congresso enviou um mensageiro – informou ele com a voz arrastada pelo sono, deslizando os pés descalços na direção de Narisa. – Estão reunidos e esperando por vocês.
Lorenzo coçou os olhos, bocejou, e olhou para ela, piscando assustado de repente.
– Tudo bem? – questionou ele, em uma mistura adorável de sonolência e preocupação. – Você está tão pálida.
– Estou bem – Narisa se apressou em dizer, sorrindo para o garoto e passeando os dedos pelo cabelo dele. – Apenas cansada.
Lorenzo semicerrou os olhos, desconfiado – mas não teve a chance de questioná-la outra vez. Hemuri escancarou a porta da biblioteca e adentrou o recinto em passadas barulhentas e nada discretas.
– Então era aqui que você estava. – Disse ele se aproximando. – Dalton está fazendo um espetáculo lá na frente por ter de esperar. E são meus pobres ouvidos que estão sofrendo.
– É verdade – concordou Lorenzo – Ouvi lá do meu quarto.
– Dalton é sempre tão exagerado – murmurou Narisa antes de se voltar para o mais novo. – Não devo voltar antes do amanhecer, então não espere por mim. Durma cedo e nada de comer durante a madrugada.
– Eu não como durante a madrugada – Lorenzo resmungou, cruzando os braços e arrancando um sorriso da mulher.
Hemuri se intrometeu na conversa, afirmando que Lorenzo comia sim durante as madrugadas – e acrescentando que não era nada discreto durante o ato, o que fez um bico emburrado surgir nos lábios do mais novo. Narisa se distraiu com isso enquanto o observava.
Lorenzo possuía uma suavidade nas expressões que nenhuma outra pessoa poderia ter. Era natural, puro, e apenas olhar para ele a acalmava de maneiras inexplicáveis. Ele era um garoto especial, único, e nunca havia se dado conta disso. Às vezes, quando ouvia alguém – ou ele próprio – o diminuindo, a Sábia sentia vontade de gritar o quão importante ele era. Não era justo que alguém como ele carregasse tantas dores e sofrimentos.
– Sinto por interromper este belíssimo momento, mas precisamos ir logo. – Apressou Hemuri, batendo palmas, quando pareceu se cansar de aborrecer Lorenzo. – Houvi rumores de que a jovem Rebeca discutiu com Fausto e preciso tirar essa história à limpo urgentemente.
Lorenzo riu e foi com o Sábio para o corredor, resmungando sobre alguma coisa que soava como uma piadinha interna entre os dois. Narisa suspirou, contendo um sorriso, e seguiu atrás deles.
Se você estivesse aqui...
... Ficaria muito orgulhosa.
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A Receptora - O Ritual de Iniciação (livro um)
FantasyRebeca Westgan, uma adolescente nova-iorquina de dezesseis anos, achava impossível arrumar um problema maior do que a avó irritada naquela fatídica sexta-feira. Mas sua convicção vai para o ralo quando ela se depara com dois estranhos garotos brigan...