CAPÍTULO 46: Como Matar Coisas

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O relógio marcava exatamente três e vinte e dois da madrugada quando Rebeca, ronronando um palavrão enquanto tropeçava na barra da calça do pijama, terminou de descer o último degrau da escada. Deslizou os pés descalços na direção da cozinha, cerrando os olhos e agitando os braços para não trombar com nenhum móvel enquanto fazia seu caminho até a geladeira com um único objetivo em mente: Surrupiar o pote de sorvete que sabia que Anne tinha escondido no fundo do freezer.

Não era bem um costume acordar de madrugada para afanar a geladeira, mas não estava conseguindo ter mais do que cochilos esporádicos naquela noite, cada um carregando uma imagem que a fazia acordar suando e tremendo com cada vez mais intensidade. Via uma infinita batalha se estendendo em um campo enegrecido de cinzas e neblina. Via uma grande sala de estar ruindo em chamas, que devoravam tanto móveis quanto pessoas. Via as construções brilhosas de Esdom desmoronando em montes de escombros e poeira. Via Natasha, sua mãe, ajoelhada e chorando diante de um monte de corpos sem vida, soluçando uma única frase enquanto arranhava os braços com as próprias unhas: Foi tudo em vão.

A última imagem foi o estopim para Rebeca saltar da cama e correr para o andar inferior em busca de algum alento comestível.

Já tendo o pote de sabor desconhecido em mãos, ela correu até a bancada, tateando cegamente em busca da gaveta dos talheres para achar uma colher antes de escorregar até o chão com as costas apoiadas no balcão.

Só três colheradas no sorvete de menta depois, ela percebeu que não era a única na cozinha.

– Ah – disse Noah, parecendo tão surpreso quanto ela por se encontrarem ali. Seu vulto semi-encoberto pela penumbra surgindo silenciosamente na frente dela. – Oi.

– Oi – ela respondeu com o mesmo tom contido dele, não conseguindo evitar que a última conversa que teve com Narisa retornasse até seus pensamentos. A Sábia tinha razão. Não estava afastando Noah pela mentira, mas sim por algo que ele não tinha controle sobre e que a apavorava. – Então... – ela arriscou, quase mordendo a própria língua. – Sorvete?

Nem mesmo a falta de iluminação foi capaz de esconder a surpresa de Noah. Balançando os ombros para disfarçar isso, ele sentou ao lado de Rebeca no chão enquanto ela tateava a bancada outra vez, procurando outro talher.

– Por que está aqui? – quis saber, passando a nova colher para Noah. Tinha uma mínima consciência de que o horário estipulado no contrato falso de segurança não contemplava madrugadas.

– É minha última madrugada como guardião – ele disse – E eu gostaria que ela terminasse sem grandes incidentes. Nunca se sabe quando um ataque pode acontecer.

Rebeca abaixou a colher que estava erguendo até a boca para encarar seus olhos, a única coisa que podia ver com um pouco de clareza no rosto dele.

– Última madrugada? – ela repetiu, imaginando se ele podia notar o quão confusa ela estava. – Você vai...

– Vou pedir pra ser afastado – ele completou por ela, contraindo as mãos ao lado do corpo. – Não vou mais ser seu guardião.

Rebeca demorou algum tempo até conseguir parar de murmurar sílabas desconexas e realmente dizer algo.

Quê? Noah, não sei se...

– Relaxa, vou indicar o Palathorn pra tomar meu lugar, tenho certeza de que ele vai querer a função de volta.

– Não é isso. Eu preciso te falar que e-

– Eu posso ser meio mala às vezes, mas percebo as coisas – ele a cortou de novo, como se já soubesse o que ela diria e temesse ouvir. – E sei que não sou sua pessoa favorita no momento e, sério, acho seu ódio totalmente compreensível, tipo, mesmo, e também...

A Receptora - O Ritual de Iniciação (livro um) Where stories live. Discover now