CAPÍTULO 43: Arcos

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"Um longo túnel cavernoso se projetava em paredes altas e úmidas ao redor de Rebeca. Água escorria pelas fissuras das pedras e uma corrente de ar percorria o túnel de uma ponta à outra. Só haviam duas direções: Diversos metros à sua frente um arco feito de ouro brilhoso levava até a luz, que pulsava calor e vitalidade. Atrás dela havia outro arco, mas este era retorcido como galhos secos e cheio de espinhos. Levava até a escuridão, que exalava o cheiro pútrido da morte. Rebeca sentiu um arrepio percorrer sua espinha e correu para a luz, mas quanto mais corria, mais distante ela ficava. Correu até perceber que não faria diferença nenhuma.

Não tinha como fugir da escuridão.

Foi então que um vulto surgiu perto do arco dourado, uma silhueta masculina, um garoto. Ele a observou por segundos que se passaram com a velocidade de uma eternidade até erguer uma mão para ela, acenando em despedida.

– Não – ela sussurrou, desesperada – Não me deixe aqui.

Por um segundo, ela pensou estar reconhecendo o garoto envolto por sombras, a familiaridade na anatomia dele acendendo sua memória, mas ele se afastou antes que ela conseguisse descobrir quem era, caminhando para dentro do arco e desaparecendo pelos raios de luz que o envolveram como se o abraçassem.

Rebeca caiu de joelhos no chão de pedra. A escuridão a alcançou, envolvendo-a com garras que rasgaram sua pele, sussurrando com uma voz aveludada e macia duas sentenças:

– A escuridão lhe chama – disse a voz – Por que foge de seu destino?"

– Acorde!

Os olhos de Rebeca se abriram enquanto ela tentava gritar, mas seus gritos eram impedidos de ganharem liberdade pela mão que tampava sua boca. Ainda entorpecida pela sono, não pensou duas vezes antes de fincar os dentes nos dedos esguios que pressionavam seus lábios. Seu atroz foi pego de surpresa, afastando-se dela com uma exclamação de dor e uma enxurrada de palavrões. Os dedos dela voaram até o abajur prateado para usá-lo como arma e estava prestes a arrancá-lo da tomada com um único puxão violento quando reconheceu a voz do invasor. Escorregou a mão até a cordinha do abajur, que iluminou o quarto o suficiente para que ela visse Noah sentado em sua cama, chacoalhando a mão direita para todos os lados enquanto maldizia tudo e todas as coisas que lhe pareciam adequadas.

Rebeca piscou os olhos, o coração saltitando agitado contra o peito, e relaxou o corpo tensionado. Uma fraca luz – dos prédios, postes e letreiros das ruas – adentrava o quarto pela janela, indicando que o dia sequer tinha começado a amanhecer.

– O que você pensa que está fazendo? – questionou em um sussurro, não querendo acordar o restante da casa.

Noah estava olhando para a mão ferida, parecendo um garotinho de cinco anos que tinha acabado de perder seu brinquedo preferido.

– Você me mordeu! – ele disse como um protesto, totalmente indignado. – O que você pensa que está fazendo?

– Foi você quem invadiu meu quarto e tapou minha boca – ela retrucou, não sentindo o menor dos arrependimentos. – A culpa é sua!

– Tapei sua boca porque você estava começando a gritar enquanto dormia e iria acordar a casa toda antes de saírmos daqui – disse ele, embalando a mão rente ao peito como se ela estivesse quebrada. – E é isso que eu ganho quando tento ajudar.

Rebeca revirou os olhos, sentindo os lábios tremularem para formar um sorriso diante da voz embirrada do garoto. A sonolência deixava seus pensamentos letárgicos, mas sua memória parecia estar mais ativa do que nunca, levando-a em um piscar de olhos para um cômodo vazio e escuro, onde um buraco se abria conforme madeiras iam se quebrando e partindo, iluminado unicamente por uma chama que ardia em laranja e vermelho.

O sorriso dela morreu antes mesmo de nascer.

O filho de Damion. Ela podia jurar que alguém sussurrava em seu ouvido, arrepiando-a dos dedos dos pés até o couro cabeludo. Noah é o filho de Damion.

Como se lesse seus pensamentos e soubesse exatamente o que ela estava remoendo, Noah lançou um olhar vacilante para Rebeca antes de largar a mão machucada, levantando-se e se afastando alguns bons passos da cama como se tivesse levado um choque.

Rebeca se lembrava perfeitamente de ter pedido para que ele lhe desse tempo para assimilar as descobertas, mas não sabia em que mundo invadir – e sabe-se lá por qual vez – o seu quarto podia ser um sinômino do seu pedido.

– Que horas são? – perguntou baixinho, embolando as mãos no cobertor. Era imensurável o quão desconfortável conversar com Noah tinha se tornado do dia para a noite.

Ele deu as costas para ela, observando as cortinas fechadas com dedicação. 

– Quatro e quinze, mais ou menos.

Os olhos dela se arregalaram, descrentes e irritados.

– Por que infernos você veio me acordar tão cedo? – quis saber, embora uma parte sua agradecesse por Noah tê-la despertado do pesadelo. Não que visse necessidade ou tivesse vontade de compartilhar a informação.

– O segundo teste – disse ele. – Vai acontecer daqui a pouco. Precisamos ir.

Rebeca engoliu em seco. Sabia que era sua melhor alternativa, mas o último teste não tinha sido a mais interessante das experiências e ela não podia negar que estava assustada com o que viria a seguir.

Meneou a cabeça em afirmativo e se sentou apoiada nos travesseiros, ansiosamente desejando que ele saísse do quarto e a permitisse ter alguns minutos para acalmar os pensamentos antes de partir para Esdom.

– Preciso trocar de roupa – murmurou depois de perceber que, estando de costas, ele não tinha visto o sinal.

Noah se mexeu e ela pensou que estivesse saindo, mas ele girou para ela, reaproximando-se da cama em uma lentidão tortuosa. Rebeca fincou as unhas nas palmas, tentando se concentrar na ardência dolorida na pele para não gritar ou fugir dele.

Noah não vai me machucar. Ela afirmou para si mesma, logo sendo retrucada por um sussurro aveludado de uma voz que não era a sua.

Não vai?

Ela fincou as unhas com mais força. Certamente tudo o que precisava agora era começar a ouvir vozes e, pior ainda, tentar argumentar com elas.

Não poderia...

Que tamanha inocência você tem.

Ele não é o pai!

A voz não respondeu, se calou, permitindo-a um milésimo de alívio antes de Noah parar a menos de um metro dela. Alguns poucos centímetros que pareciam separá-los como um abismo profundo. Ele não disse nada, apenas retirou dois pedaços retangulares de papel do bolso da jaqueta e escorregou na direção dela sob a cabeceira.

– Escreva um bilhete, diga a sua avó que tivemos de sair cedo para conseguir bons lugares, ou qualquer coisa assim. – Ele disse suavemente, lançando-a um último olhar antes de afastar para a porta. – Vou te esperar lá embaixo.

A porta se fechou com um click atrás dele e Rebeca apanhou um dos papéis com dedos afoitos, vendo que se tratavam de ingressos para uma convenção de Star Wars que aconteceria naquela manhã. Ela piscou os olhos, sentindo um bolo se formar na garganta com uma velocidade impressionante. Se lembrava perfeitamente de ter se lamentado para Noah quando passaram de táxi na frente de um outdoor que divulgava a convenção, quase choramingando por ter passado madrugadas acordada tentando comprar um único ingresso, sem obter sucesso em nenhuma das tentativas. E Noah tinha dois ingressos com ele, o que significava...

– Nada! – ela sibilou para si própria. Se recusava a completar o pensamento. Se recusava. – Não significa nada.

Ainda assim, perdeu alguns segundos encarando a penumbra, imaginando se algum dia seria capaz de entendê-lo por completo.

A Receptora - O Ritual de Iniciação (livro um) Onde as histórias ganham vida. Descobre agora