These Palace Walls

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Assim que abro a porta do quarto sinto o cheiro de café fresco ainda que a cozinha esteja longe. O corredor está escuro porque está tão cedo que o sol sequer tinha nascido direito e mesmo assim já está um calor insuportável. Ou talvez eu que tivesse desacostumado com a temperatura daqui.

O meu despertador tinha acionado às cinco horas e eu levantei em um pulo mesmo com sono e cansaço.

Não preciso de luz pra caminhar pelo andar até alcançar a escada de mármore, aquela é a minha casa e eu tinha feito o mesmo caminho milhões de vezes enquanto crescia. Já tinha caído muito dela também.

Conforme me aproximo da cozinha o cheiro de café vai se misturando com outros aromas e quando entro no cômodo encontro uma mesa cheia de comida e meus pais conversando em voz baixa.

— Bom dia, pai. — Sorrio quando ele me olha desconfiado por cima do jornal que estava lendo.

Dou um beijo estalado na sua bochecha e ele resmunga.

— Caiu da cama? — pergunta pegando uma xícara de café da mesa.

Por mais que ele tente não consegue disfarçar a desconfiança da voz. Na verdade, acho que nem tenta pois ele tem motivos para desconfiar. Eu nunca acordava àquela hora quando estava em casa, principalmente aos domingos. Aquela mesa maravilhosa de café da manhã nunca tinha a minha presença nos finais de semana porque era muito cedo para mim, mas a caminhada sagrada e rotineira dos meus pais tinha que ser feita naquele horário. Eles saiam cedo aos domingos para poder ver o sol nascendo enquanto andavam pelo parque de Itupeva. Muito romântico.

Minha mãe nos observa parada ao lado do fogão. Os óculos na ponta do nariz e o seu livro de receitas apoiado na pia ao lado.

— Perdi o sono. — Beijo-a no rosto e já avanço na mesa, pegando uma uva verde e a colocando na boca.

Meu pai dá um gole no café e dobra o jornal em dois.

— E essa roupa? — Ele me avalia com os olhos espreitados.

Olho para baixo, para os dois tecidos de seda rosa que me cobrem e depois volto a olhá-lo um pouco confusa.

— O que é que tem?

— Tá muito curta! — Ouço ele resmungar e minha mãe dá uma risadinha baixa ao abrir o forno. — Você dorme com isso?

— Paulo, ela sempre usou esse pijama. — Ela me defende, equilibrando uma forma quente nas mãos enluvadas. — Para de ser chato.

Arranco outra uva do cacho, mas não me sento em um dos lugares vagos da mesa. Fico em pé, com as costas apoiadas na bancada.

— Agora é diferente — ele murmura, mas se cala quando minha mãe o lança um olhar repreensivo.

— Termina de comer porque daqui a pouco a gente tem que sair.

— Acho que não vou hoje — meu pai comenta quando ela coloca um pedaço de bolo de fubá no prato em frente a ele.

Eu sorrio porque minha mãe simplesmente para do lado dele, com as mãos na cintura e a expressão fechada.

— Você vai— ela diz secamente. — Você não deixou de ir um domingo nesses 30 anos de casamento, Paulo. Nem quando estava doente. O que deu em você agora?

Ele murmura alguma coisa inteligível, mas não diz mais nada para ela, se ocupando em comer. Minha mãe me olha e eu a agradeço em silêncio.

— Andei olhando na internet e vi que o clima agora em Nova Iorque é horrível, Lua — ela diz, colocando um pouco de suco de laranja em um copo. — Muita neve. Você precisa comprar uns casacos mais grossos.

— Mãe, eu vou ficar bem — digo, acho que pela centésima vez nas últimas semanas.

Nesses quase dois meses que eu estou em casa de novo, todos os dias meus pais fazem comentários sobre a minha viagem aos Estados Unidos que ocorreria dali duas semanas. Eu já tinha muito o que pensar, como por exemplo a música que eu iria cantar na minha primeira audição na Broadway ou aonde eu iria dormir caso eu ficasse mesmo por lá, mas eles viviam colocando mais coisas na minha lista de preocupações.

— Bem congelada, né? — ela retruca e eu me ocupo com o suco na minha mão.

Tento não ficar agitada, mas começo a balançar o corpo em cima dos calcanhares e bater a unha no copo de vidro gerando um clic clic irritante.

Minha mãe percebe, é claro, e bufa antes de se virar novamente para o meu pai.

— Anda, Paulo. O sol já está nascendo.

Ele resmunga de novo contrariado, mas se levanta. Olha para mim com a expressão séria e eu sorrio. Assisto dona Marlene puxá-lo para fora da cozinha e me aproximo da janela que dá para os jardins da frente.

Pego-me pensando em todas as vezes que eu ajudei minha mãe a plantar e regar as flores que ela cuidava com tanto afinco. Também me lembro de todas as vezes que eu destruí metade do jardim andando de patins ou skate e quase a fiz ter um ataque do coração.

E como eu senti falta daquele gramado verdinho, das margaridas e orquídeas que ela plantava, de ficar deitada na rede na varanda olhando as gotas de chuva fazerem buraquinhos na água plana da piscina, de ficar sentada na beira da janela do meu quarto acompanhando o movimento da rua enquanto tentava estudar ou ler alguma coisa.

Senti falta de tudo isso no meu tempo em Londres. Tempo esse que quanto mais pensava mais maluco parecia. Ás vezes eu tinha quase certeza que essa viagem para Inglaterra tinha sido invenção da minha cabeça porque não é possível que eu tenha passado por tudo aquilo.

Meus pais aparecem do lado de fora e eu os acompanho atravessar o jardim comprido com o olhar, dando uma última golada no suco. Eles somem do meu campo de visão, mas eu continuo olhando para fora por um tempo.

Quando me afasto da janela coloco o copo sobre a pia, pego mais uma uva e saio da cozinha. Passo pela sala de jantar com aquela mesa gigante de oito lugares que quase nunca era usada e chego às escadas.

Subo os degraus apreciando o silêncio da casa. Meus passos quase fazem eco quando meus pés se chocam com o chão frio. No corredor, chego à porta do meu quarto, mas passo direto e faço o mesmo com o quarto dos meus pais.

Giro devagar a maçaneta da última porta do corredor e entro com agilidade, mal a abrindo. Na ponta dos pés eu ando até a cama, abrindo espaço para mim entre os lençóis.

Deito tentando não me mexer muito e fico quieta, analisando as paredes cor de creme e ouvindo a respiração profunda do meu lado.

Em determinado momento ele vira o corpo pesadamente até que esteja de frente pra mim e solta um ruído com a garganta para me deixar saber que está acordado apesar de ainda estar com os olhos fechados.

— Oi — murmuro virando o rosto em sua direção.

Tateia o meu braço até chegar ao meu cabelo. Solta um suspiro antes de abrir os olhos lentamente.

— Oi. 




De Lua, com amorWhere stories live. Discover now