Prólogo

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Chovia naquela noite, e as gotas batiam tão forte contra a pele que poderiam ser comparadas à ácido, além do vento selvagem que já havia derrubado fios e arrastado placas e algumas outras coisas lelo caminho. Parecia não haver ninguém pelas ruas da cidade, mas se houvesse, não daria para enxergar em meio a escuridão.

A pequena menina de bochechas rosadas e cachos dourados olhava tudo a sua volta, enquanto era arrastada pela mulher que trazia em seu pálido rosto uma expressão de horror, as duas encharcadas.

O cabelo da mulher grudava em seu rosto e ela se vestia sem muita vaidade, com uma calça jeans velha e um moletom cinza muito grande para seu tamanho, mas mesmo assim era de uma incontestável beleza, os olhos azuis brilhavam de pavor e os lábios eram duas finas linhas rosadas.

Mãe e filha fugiam de alguém ou de alguma coisa que não se mostrava, mas a mulher sabia que não sobreviveria, sua esperança era conseguir salvar a menina, esse era o motivo de toda sua luta, e dor. Era o motivo de toda sua existência.

Seu olhar foi até a criança por um momento, mas não precisava olhar, já havia memorizado aquelas feições tantas vezes, os cachos que não se desmanchavam nem por baixo de tanta chuva, rosto redondo de bochechas rosadas, e olhos negros como os do pai, selvagens e perigosos, pareciam não pertencer ao conjunto.

Então ela lhe sorriu e mesmo apavorada não poderia deixar de retribuir, foi um breve momento, mas suficiente para lhe lembrar que tudo valia a pena. Não diminuiu o passo nem por um segundo, mas podia sentir que estavam se aproximando, precisava agir rápido.

Talvez por sorte deram de cara com um beco escuro e apertado que era extremamente convidativo naquele momento, acreditou que serviria para esconder a criança. Levou a menina até o fundo do local, que só não era totalmente vazio por ter uma enorme lata de lixo azul. Seus olhos eram tristes agora, transmitiam a dor da despedida, soltou a criança atrás da lata de lixo, e sentiu seu peito doer, pois a pequena chorava como se soubesse o pensamento da mãe, mas a mulher forçou um sorriso quando falou com ela.

— Shiu! Não chore meu amor, você vai viver, vai ficar tudo bem. — Ela disse secando o rosto úmido da menina e então ouviu um barulho próximo e seu rosto voltou à expressão de terror, sem hesitar ela virou-se e foi em direção à saída, sua intenção era correr, afastar quem estava as seguindo, levar aquilo para o mais longe possível de sua filha, mas ela mal conseguiu sair do beco, sua perseguidora já estava lá.

Nada se ouvia, nem mesmo sua própria respiração, a pequena queria ir de encontro a sua mãe, não entendeu o motivo de ter sido deixada sozinha, mas o medo a paralisou e não sabia nem do que tinha medo, respirou profundamente tentando de alguma maneira criar coragem, o ar fez arder suas narinas, ela choramingou, parecia doente, sua mãe deveria estar com ela cuidando para que melhorasse.

Tentou se levantar, mas seus pés pequeninos pareciam não possuir a força necessária para isso e o que conseguiu foi ficar na posição de gatinho, um pequeno felino acuado que se arrastou um pouco a frente e então ouviu-se o grito, algo tão alto e familiar que lhe lançou para trás, os olhos arregalados, era como se o som a chicoteasse, suas mãos foram até os ouvidos que doíam.

Tudo voltou ao total silêncio, ela nem perceberia que estava chorando se não fosse o gosto salgado das lágrimas em sua boca, a cabeça se afundou entre as pernas, todo seu corpo tremia de frio e medo, estava sozinha, ou pelo menos era isso que pensava até ouvir uma voz.

— Não precisa chorar pequena criança, serei rápida.

Como o lobo que chamava a garota da capa vermelha na história que sua mãe lhe contava, uma voz que você sabe que é de alguém ruim, mas mesmo assim quer ir até ela.

Lentamente levantou a cabeça para contemplar quem estava lhe falando, e era uma mulher pequena e pálida que a admirava com seus olhos azuis profundos, seus belos cabelos vermelhos caiam pesados sobre ombro e os lábios cor de sangue pareciam pintados.

A criança sentiu-se tonta, olhava de volta como se fosse um presente novo que acabara de ganhar, a beleza da mulher lhe fazia lembrar seu pai, o que era estranho, pois não se pareciam em nada, mas mesmo assim, algo nela a levava até ele. Sentiu a dor da falta, seria bom ter o pai por perto nesse momento, sentia-se tão protegida perto dele, por algum motivo ela estava prestes a se jogar nos braços da estranha misteriosa.

Então ela notou que logo atrás da mulher tinha um borrão vermelho, tão presente que ficou se perguntando como não notara antes, foi uma fração de segundos, mas pareceu se passar uma eternidade até o momento que percebeu os fios dourados em meio a todo sangue.

Um choque, a garota se pôs de pé, seu rosto não era mais doce, seus olhos pareciam ainda mais selvagens, ela estava tomada por um ódio que nenhuma criança deveria poder sentir, não havia espaço para mais nenhum sentimento dentro dela, nem mesmo o medo, nem mesmo a dor. E então outro grito.

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Marcas em Sangue   [Em Revisão]Where stories live. Discover now