Capítulo XII - A virgem dos campos de centeio

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JÁ ERA noite, guardou seu caderno e se deitou no colchão frio. Olhou a janela e viu as estrelas e pensava e pensava tentando se distrair para o sono vir e ele não vinha.

Dormiu. Digamos que para ela foi alguns segundos, mas se tivesse acordada ficaria horas olhando para o teto e contando as frestas que a deixavam ver o céu. O sono vem assim, nunca pela porta da frente, vem pelos fundos acaricia nossa cabeça e nos faz flutuar em meio às nuvens.

Levantou enlouquecida, tinha aula. Agora ninguém mais tem que se preocupar muito com chuva, os poços estavam cheios, tinham vasos e panelas todas ocupadas, bebia agua até antes de ir para escola uma coisa que era uma raridade ou nunca acontecia.

Colocou a roupa e foi ao encontro da tia. Passou pela pequena, mas confortável cozinha e nada da mulher. Foi direto ao quarto e viu a mulher. Em pé de costas para a porta e Francisquinha, mas de frente para uma escrivaninha. Pelo acolher das mãos junto do tronco Francisquinha deduziu que segurava algo. Bateu na porta e a tia tomou um susto. Ainda de costas passou o papel para dentro da gaveta, com a outra mão puxou um fundo falso e colocou a foto lá. Virou-se e viu Francisquinha na porta como um guarda.

O rosto da tia nunca na sua vida denunciou sua idade. Aos 15 tinha uma pele limpa como pêssego e nem parecia ter essa idade. Hoje com 50 ninguém diria que esta mulher tem esta idade. Pelas roupas largas remendadas com velhos panos poderiam até lhe dar uns 40 – para ser justo – mas seu rosto era belo e lhe lembrava dum anjo. Nunca tinha percebido isso, só agora encarando a tia por uns 2 minutos.

- Porque acordou tão cedo? – perguntou a já foi logo se encaminhando para a cozinha, Francisquinha a seguiu.

- Não é cedo, já vai dar 7 – respondeu como se responde uma pergunta retórica: bem lentamente..

- Sete!? Meu Deus, a comida. -  a tia começou a pegar panelas nos armários velhos e comidos por cupins e colocou algumas na pia para passar uma água, outros deixou no fogão e já foi colocando um pouco d’água que tinha pegado do poço de manhã bem cedo antes mesmo do Sol nascer. – Caminhe minha filha, ande tome esse pedaço de pão e vá comendo no caminho. – Entregou o pedaço a Francisquinha e vou dando empurrões de leve nas costas dela para que adiantasse e fosse para a escola.

- Está bem. Só me deixe pegar as minhas coisas e eu largo do vosso pé – foi até o quarto, pegou suas coisas e quando já estava saindo da casa encontrou um papelzinho. Já estava desgastado e velho, era amarelado e estava até rasado. Pegou o papel e leu para si o que estava escrito nele. Leu o primeiro paragrafo e estranhou, depois escondeu na mão e foi lendo pelo caminho até a escola. Dizia assim:

‘’A virgem dos Campos de centeio

Prevejo o meu monótono dia 
de amanhã como prevejo que 
daqui a alguns segundos irei 
respirar.

Às vezes eu só queria que a
poeira continuasse no mesmo
lugar, que a brisa suave não 
levasse ela para longe e que
me conservasse frio e cruel.

É... a vida só pode ser 
considerada um balé 
quando você quebrar 
a perna e parar de dançar.

E mesmo assim neste teatro
não dá para trocar de papel
apesar de escrever meu futuro 
eu sou o artista principal e nada
pode mudar isso. Ou pode?
não sei.

Continuo prevendo meu monótono
dia de amanhã, como não sei se 
amanhã estarei vivo. Hoje só me 
resta respirar, me mantém vivo e
isso é bom. Ou não? Talvez...

Agora estou feliz comigo mesmo,
parece que uma boa faxineira limpou
a minha consciência como limpa um
vaso empoeirado da estante.

E depois de tudo isso é quase
impossível acreditar que a 
faxineira ganharia alguma 
coisa com isso. E não ganhou

Depois de tanto trabalho vem
a recompensa de viver e eu 
estou vivendo bem. Obrigado 
por perguntar.

Ninguém percebe que tem algo
errado. Eu estou morrendo por
dentro, mas se a minha carne 
ainda permanece intacta eu estou
bem.

Às vezes eu penso que sou
uma criança de novo, olhando 
o céu e tentando adivinhar 
o que as nuvens estão tentando 
formar. Hoje foi uma tartaruga,
amanhã pode ser uma árvore 
quem sabe?

Estou segurando as rosas que
eu recebi de alguém e não sei
quem poderia ou quem estaria
gostando de mim. Eu sabia que 
algum dia isso aconteceria. Mas
arrisquei deduzir que era impossível
por isso estou aqui.

Morrer é um luxo e como eu
sou pobre eu estou viva. É
gratificante, mas também é
desgastante e arrasador.

Se eu for morrer
Que eu morra de
Amor.’’

            Francisquinha leu o caminho todo. Sem perceber leu umas três ou quatro vezes. Leu tanto que passou da escola e já estava a uns quilômetros depois. Voltou o caminho todo até a escola e ficou pensando quem escreveu aquilo. Não era de um livro, ela sabia por causa da estrutura. Nem um poeta faria uma escritura assim toda mal organizada. Mas que era bom era.

            Guardou no seu bolso e entrou na escola.

~~~~~~ ∙ ~~~~~~

            - Quem sabe no futuro? Não vou me enganar com ideias mirabolantes, meus pés estão no chão. Mas quem sabe um dia, amor,

FrancisquinhaWhere stories live. Discover now