Capítulo XVII - Um cego fazendo retrato-falado

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             Lembro-me de uma vez. Janela de Antonia estraçalhada. Primeiro grito que deram: FRANCISQUINHA.

            Antonia estava pé da vida. Gritava. Mas com motivo, não é a primeira vez que quebram a janela dela. Já era idosa e cega. Perguntaram como era à pessoa que quebrou a janela ela colocou a mão no queixo, tirou os óculos e disse:

            - Deveria ter uns 20 anos. Olhos azuis, loiro. Um metro e noventa. Vinha num cavalo branco e o vento batia nas suas madeixas como um vento que bate numa árvore e carrega suas folhas. Uma capa de veludo estava sobre seus ombros, caía como um manto e era prendida com dois broches de esmeralda. Foi o cavalo dele que quebrou minha janela, ele veio me buscar. – Todos olhavam como se ela tivesse começado a ficar louca até uma criança gritar.

            - MAS ELA NÃO É CEGA?

            A mãe tapou a boca da criança com as mãos. Nesse meio termo já se tinha ajuntado umas vinte pessoas na pequena casa de andar de Antonia.

            - Acredito que eu ainda seja. Eu estou enxergando tudo preto, serve? – estendia a mão e pararam com as perguntas. Ficaram cochichando entre si parecendo que a velha além de cega era surda.

            - Ainda ouço um pouco, acredito eu. Vocês estão falando baixo demais, onde aumenta o volume? – franziu a testa e uma mulher deu um grito.

            - FOI FRANCISQUINHA.

            Todos viraram para ela, até a tia de Francisquinha. Estavam a encarando, e aqueles olhares a diminuíram até se tornar um grão de areia, que de grão em grão constrói a grande montanha.

            - Se Francisquinha quebrou uma vez, não quer dizer que ela é a culpada. Deveria fazer uma apuração. – um homem saiu do fundo da multidão. Fumava um cachimbo insuportável que deixava qualquer um com dor de cabeça.

            - Quem aqui tem tempo de estar investigando moleque que quebra janelas?

            - Pois bem, e onde está Francisquinha?

            - Estou eu aqui. – respondeu saindo do meio da pequena multidão. Abriram o espaço e deixaram a menina no meio para ser julgada.

            - Onde estava? – deu uma baforada no rosto da menina que sacudiu os braços em agonia e espirrou.

            - Estava eu na escola, cheguei agora. – respondeu num tom desafiador e desenvolvendo um pouco de ousadia que deixava a tia um pouco preocupada. O homem tirou o cachimbo rapidamente da boca e colocou o dedo indicador no rosto da menina.

            - Menina, não me... – mal conseguiu falar e foi cortado.

            - Deixem a menina – a mulher cega estava virada para a janela de costas para todos. Um a um foi saindo vagarosamente já cientes de que dali não sairia nada. Francisquinha tinha uns 16 anos já e não cabia para moça estar quebrando janelas.

~~~~~~ ∙ ~~~~~~

Chegando a casa sua tia lhe entregou uma carta que dizia mais ou menos assim:

‘’É sempre difícil escrever coisas desse tipo para você porque é quase uma filha para mim. Gostaria de rodear, passar páginas e páginas da vossa vida até que saiba dessa noticia tão desagradável. Poderia entregar tudo que tenho para mudar isso, mas é o que o destino nos proporcionou. Não sei nem como mais enganar para dar essa noticia que me coroe por dentro antes de dormir, quando estou sentada tricotando ou até mesmo no banho. Poderia lhe poupar tudo da vida, mas você está sempre tão distante de mim então eu gostaria que passasse um tempo comigo para poder dizer com calma o que aconteceu e o que está acontecendo. Vou mandar um dos meus homens lhe buscar na vossa casa. Já falei com sua tia há algum tempo e agora mesmo recebi a noticia de que ela acertou. Venha até a mim, minha pequena.

Att Pandora’’

Ser chamada pela sua tia não era nem uma novidade, sempre que chegava o final do ano ela quase que suplicava pela presença de Francisquinha que sempre agradecia, mas acabava negando. A novidade é esta noticia que agora abalava tanto ela quanto sua tia e Pandora. De algum modo estavam interligadas. Tudo está junto e ao mesmo tempo separado, como a areia do litoral. O vento leva os grãos superficiais e tudo que resta são os outros por baixo ou até os molhados que são pesados para serem carregados.

Cegos não conseguem descrever retratos falados porque um bem precioso foi tirado deles como uma criança que já comeu muito doce e o ultimo é tomado e guardado. A diferença é que eles nunca vão ter esse tesouro de novo. Estamos guardados nas profundezas do universo. No centro das galáxias esperando um ser nos descobrir e nos contar com riqueza de detalhes sobre os segredos do mundo.

Arrumou suas coisas e esperou. A noite trouxe os homens que a levaram até Pandora. O vento era forte, balançava seus cabelos e levava os babados do seu melhor vestido. Demorou a chegar e quando chegou estava num sono profundo. Pandora pediu que a levassem para a cama já pronta.

Era uma pedra no meio de penas. Rígida. Não se mexia. O rosto para o céu e seus olhos fechados no meio do nada. Nada era tudo que mais queria. Tudo parecia crescer e Francisquinha estava cada vez menos entre as penas e o universo.

Estava num rio de flores douradas. Viu seu pai e uma mulher de costas para ela. Tentava correr até ele, mas ele desaparecia e as flores a seguravam com suas raízes. A mulher estava de vestido branco e quando ela se virou Francisquinha acordou.

FrancisquinhaWhere stories live. Discover now