Lembranças IV

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***Luna

Não demorou muito para que Beatriz voltasse do quarto. A mulher estava bastante séria. Em mãos, ela segurava um pequeno frasco prateado.

Com o retorno da amiga, Rafael mostrou-se ainda mais tenso. Estava evidente em seu rosto o medo que ele estava sentindo por mim. Mas eu não podia deixar que aquilo abalasse meu psicológico. Eu precisava me manter focada no meu maior objetivo naquele momento: recuperar minhas memórias. Descobrir quem eu era de verdade.

— Fiz um encantamento no quarto, para isolá-lo do barulho. Sabemos o quanto Íris e Félix têm a audição aguçada. — Comunicou a Mor, assim que se aproximou. — Quero tentar não incomodá-los com o barulho.

— Isso é realmente necessário?! — Rafa a fitou, totalmente apático.

— Bem... — Ela deu um profundo suspiro que seguiu-se de um meio sorriso amarelo. — Digamos que, quando eu avisei que o processo seria doloroso, eu não estava exagerando...

— Ela vai sentir dor física mesmo?! — O rapaz ergueu um pouco o tom da voz.

— É inevitável... Sinto muito. — Ela respondeu, olhando diretamente para mim. Seus olhos transmitiam um certo sentimento de pesar.

— Cara! Isso é loucura! — Meu amigo olhou para ela e em seguida para mim. — Tem certeza que quer mesmo fazer isso, Luna?! Talvez haja um jeito menos doloroso!

— Já decidi, amigo. E preciso que esteja por inteiro comigo nessa. — Respondi calmamente. — E não acho que exista uma forma menos dolorosa de fazer isso.

— É isso que não entendo! — Ele fitou a Mor. — Por que quando tu apagou a memória do Thales e do Esteban, as coisas não precisaram ser assim?! O processo de recuperação deles foi mamão com açúcar perto disso que tu tá dizendo, Bia!!!

— Não acredito que está fazendo essa comparação, Platinado! — Bia colocou uma das mãos na cintura. — Foram situações bem diferentes! Com eles, eu mesma fiz o feitiço para apagar um número limitado de lembranças: só as lembranças mágicas! Sei o feitiço. Já com Luna, não sabemos se foi usado feitiço ou poção... Também o que foi arrancado dela foram todas as lembranças, deixaram a garota praticamente vazia... Foi algo muito mais complexo e, aparentemente, feito por alguém bem habilidoso. Por isso, a poção que fiz para fazer com que ela volte a se lembrar de tudo, teve de ser tão forte!

— Algumas coisas ele não consegue entender, nem explicando um milhão de vezes, Bia. — Caçoei do meu amigo.

— Ei!!! — Ele me encarou sério. Isso é hora pra piadinhas?

— Sério, Rafa... Só vamos fazer isso, okay? — Pedi. — Minha decisão já foi tomada e preciso que você esteja comigo nessa o tempo todo.

— Tá! — Ele revirou os olhos. — Vamos fazer isso! Mas que fique bem claro que, se algo te acontecer, eu nunca vou conseguir me recuperar!

— Pensamentos positivos, por favor! — Pediu Beatriz, encarecidamente.

— É! — Concordei. — Ser positivo ajuda muito nessas situações, amigo.

O rapaz assentiu. O ambiente ficou silencioso. O som da lareira era o único que podia ser ouvido.

Rafael segurou minha mão a pedido de Beatriz. Em seguida a mulher abaixou-se à nossa frente e falou, quase que sussurrando:

— Preciso que beba isso e pense em tudo que deseja descobrir sobre si mesma... Ou seja, todo o seu passado. Foque em todas as respostas que deseja, Luna.

Eu apenas concordei em silêncio. Então, Beatriz tirou a pequena tampa do frasco que tinha em mãos, e o entregou a mim. Virei o conteúdo goela abaixo de uma só vez, e voltei a entregá-la vazio.

Ela segurou o pequeno frasco, suspirou fundo, e pediu:

— Agora preciso que você, Luna, feche os olhos... Quanto a você, Rafa, concentre-se em mantê-la segura. Sei que é capaz de fazer isso, a amizade de vocês é muito forte.

— Okay. — Foi a única resposta vinda do rapaz ao meu lado.

Totalmente segura de que tudo daria certo, fechei os meus olhos, entregando-me por completo à escuridão de minhas pálpebras. Depois de alguns segundos, ouvi Beatriz sussurrar com bastante firmeza nas palavras:

— Grande antepassado, Merlin... Me conceda sabedoria e força para guiar as pessoas pelo caminho correto. Sou uma humilde criatura de carne e osso que necessita de seus conhecimentos que se propagaram através do tempo... Que seu poder e seu nome sejam honrados e lembrados eternamente... Que todos os caminhos que sua magia abriu, jamais possam ser fechados por quem quer fazer o mal... Que esta luz, emanada agora por minhas mãos, enriqueça ainda mais essa poção ingerida... Que essa filha da terra à minha frente, encontre as respostas que tanto procura. Que sua mente, cansada das trevas, se abra com o poder de uma poderosa chave de luz encantada! Dê-me o poder para ajudá-la, óh, grandioso!

Quando as palavras cessaram, um forte zumbido se apoderou de meus ouvidos. Era como se eu estivesse em meio a um enxame de vespas gigantes.

Em seguida, veio a...

Dor...

Uma dor incontrolável começou a me atingir. Minha respiração ficou mais pesada, assim como meu corpo que, em poucos segundos, senti pesar para trás. Toneladas pareciam ter sido adicionadas a mim.

Era como se eu estivesse presa em mim mesma. Eu tentava abrir os meus olhos, sentia-me consciente, mas não conseguia. Eu havia perdido o controle sobre meu corpo. Era como se eu estivesse sofrendo uma paralisia do sono... Presa. Obrigada a enfrentar todos os meus pesadelos.

Meu corpo parecia estar em chamas, porém, minha boca não abria para que eu pudesse pedir por socorro. Senti meu corpo começar a ficar cada vez mais molhado. Com certeza, eu estava suando, pois eu sentia como se estivesse sido condenada à fogueira... Como seu eu estivesse sendo assada viva.

Eu queria gritar, mas minha boca não abria... Era como se meus lábios estivessem unidos por algum tipo de super cola.

Por um momento, um grande arrependimento me invadiu. Eu queria sair dali. Queria ter controle sobre mim mesma, poder abrir os meus olhos e despertar daquele pesadelo doloroso... Mas eu não tinha forças o suficiente.

Minha respiração ficava cada vez mais ofegante. Cada vez mais, as dores, queimações e pontadas, me castigavam. Senti-me fraca... Como se não fosse capaz... Como se não fosse conseguir passar por tudo aquilo.

Parecia que criaturas com dentes extremamente afiados haviam começado a devorar as minhas entranhas. Era como se coisas vivas estivessem dentro de mim, lutando umas contra as outras para ver qual sairia primeiro... Eu não sabia quanto tempo a mais eu seria capaz de suportar tamanha dor e angústia.

O que mais me desesperava, era não conseguir gritar por socorro... Se eu morresse ali, eu tinha a impressão de que morreria sosinha, sem ninguém saber exatamente pelo sofrimento que eu estava passando. Um sofrimento ao qual nunca eu vi igual. Presa. Dentro do meu próprio corpo, o lugar onde eu sempre me senti mais sozinha. Um lugar escuro, e totalmente vazio devido a ausência de minhas lembranças arrancadas de mim.

Acho que, mesmo que eu tentasse, eu tenho total certeza que nem com o passar de anos, eu conseguiria colocar em palavras todas aquelas dores. É o tipo de coisa que, só se sentindo para se ter uma idéia. Porém, aquilo era algo que eu não desejaria nem para o meu pior inimigo, se eu tivesse um.

Eu sentia como se meu corpo fosse se desfazer... Desmanchar-se... Era como se o meu fim estivesse decretado.

O Belo e O Fera: Herdeiro do Mal; Batalha dos Imortais [Livro 4]Where stories live. Discover now