Vanessa

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2| O PRIMEIRO DIA DE AULA
Vanessa on


PERCEBER QUE A ROTINA DOS SEUS DIAS É SEMPRE A MESMA não é tão cansativa como todos dizem ser. Você acorda no quarto que decorara com tanta animação, vê que o sol está lá fora e o calor da manhã a recebe, então seu pai super apegado entra pela porta como uma furacão e diz as mesmas palavras:


— O sol nasceu, levanta, princesa! — o homem alto e bem conservado abre um dos seus enormes sorrisos e se aproxima, suas mãos envolvendo minhas bochechas e as comprimindo até meus lábios formarem um bico desesperado — Primeiro dia de aula, princesinha!

— Você sabe que não precisa repetir frases do Frozen sempre que vir me dar "bom dia", não sabe, pai? — afasto suas mãos, não me contendo com um sorriso quando seus imensos olhos verdes me observam com o carinho de sempre.

Sempre foi assim. Ele sempre foi alegre, sempre me deu "bom dias" animados, sempre me deu todo amor e carinho que alguém que é genuinamente amado poderia receber. Esse é o meu pai e não me canso de lembrar o quanto sou sortuda por tê-lo na minha vida.

Porque é difícil ter alguém, principalmente um pai que assistia aos seus treinos de Jiu Jistu, e a consequentemente todos os golpes que eu levava quando mais nova na dúvida de que mais uma das ideias da minha mãe de que o único filho ficasse mais masculino. Eu e ele sabemos que a ex-primeira-dama sempre forçava coisas que não podiam ser mudadas.

Frozen é seu filme favorito. — franziu o cenho como se estivesse ofendido com minha pergunta, mas o lábio repuxado no canto significa que adora implicar comigo.

Era meu filme favorito, quando ainda usava fraldas ou algo assim. — afasto o cobertor turquesa, esticando meus pés até o chão a procura dos pares de pantufas — Meu atual filme favorito é Cinqueta Tons de Cinza. — minto, o provocando.

— Minha nossa senhora, filha, não faça isso com seu pai! — fez careta ao se levantar e ajeitar o terno caro — E ainda tem 17 anos, não pode assistir esse tipo de filme.

— Será? — continuo a provocar, me divertindo com suas bochechas vermelhas — Estou brincando, pai! Vai trabalhar, já está atrasado. O formoso prefeito Winston não pode deixar ninguém esperando! — entoo, teatralmente já no banheiro.

— Tenha um bom primeiro dia de aula, princesinha! — me mandou um beijo no ar que eu peguei com uma das mãos.

— Você é brega.

— E você puxou a mim, sou seu pai.

Lhe mostrei a língua antes dele jogar uma almofada nas minhas costas e sair, fazendo o quarto ser preenchido por minhas risadas ainda sonolentas. Meu pai, com toda certeza, é minha dose de serotonina do dia.

Após um banho e trocar o vergonhoso — porém, adorável — pijama de pandas por uma calça jeans e um moletom de mangas longas, de lã, calço os tênis brancos que costumo usar na escola.

Primeiro dia de aula.
Relaxa, Nessa. Relaxa.

As coisas serão diferentes, dessa vez. — digo a mim mesma, suspirando lentamente — As coisas serão diferentes, dessa vez.

Desço os degraus das escadas largas de mármore branco, repassando alguns flashs do meu último verão, não só do último, mas dos quatro verões passados.

Todos sabem que a transição começou quando completei 14 anos após uma conversa longa com meu pai. Ele se manteve apreensivo, apesar de me apoiar, porém mesmo com todo seu carinho, ainda era um risco a uma imagem desnecessária da nossa família. Meu pai sempre foi um cara importante para a cidade pacata de Middway, que apesar de pequena e tranquila, ainda se mantém presa a regimes antiquados.

Foi uma tremenda de uma notícia. O filho de um dos caras mais importantes e ricos da região vai virar mulher. Foi o que uma das manchetes do jornal — o mais ofensivo — disseram na época. Foi a pior fase da minha vida. Eu era exposta o tempo inteiro, e meu pai surtava com qualquer jornalista com uma câmera que se aproximasse do portão de entrada da nossa casa.

Foi ele quem ficou do meu lado o tempo todo, em todas as sessões, desde o início da transição, quando o estrogênio dominava meu corpo e me mudava lentamente, e me deixava ansiosa ou, às vezes, estressada, as vezes triste, ou feliz. Ele aguentou tudo, tudo em prol do que iria me fazer bem, mesmo com os rumores, as manchetes, afetando não só a mim, mas toda a nossa família, a nós dois, e ele nunca deu um passo para trás.

Foi quando entendi que meu pai não deve ser desse mundo. Ele não merece essa cidade antiquada, de mente fechada, nem eu.

As coisas mudaram um pouco em Middway quando as cidades vizinhas mudaram as tradições antigas. Quando pessoas mais jovens assumiram cargos na política e no comércio e revolucionaram tudo. A maior parte veio de Greendale, e quando conheceram meu pai e toda a nossa história, e como ele apoiava as causas que sofrem todo o tipo de preconceito, não pensaram duas vezes em elegê-lo prefeito por dois anos consecutivos.

As coisas estão mudando.

E é nisso que eu me apego, hoje.

Às mudanças.

E na esperança de não passar pelos burburinhos na escola pelas minhas mudanças.

— Vai ser diferente.

Digo uma última vez antes de sair de casa, em direção a Middway High School.

continua...

Rei Do DesastreWhere stories live. Discover now