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– Você percebeu que a Lizzie está especialmente feliz hoje?

A pergunta veio de Tora, que cochichava baixinho no outro reservado com Ray. Não sei em qual momento eles se conheceram, mas ali estavam os dois, rindo e conversando e atrapalhando a minha concentração desde às sete da manhã. Eu os ignorei, como tinha feito o dia inteiro, e desfiz o sorriso bobo que provavelmente estava pregado no meu rosto sem eu perceber.

O sorriso e o bom humor eram inevitáveis, eu não conseguia impedir. Lembrava da noite passada, de Homero, do teto do restaurante coberto de luzes coloridas, de tudo que ele dissera e das nossas risadas tão altas que faziam os outros clientes virarem as cabeças na nossa direção com uma cara feia, os beijos e os sussurros no ouvido... Suspirei.

– Ai, meu santo Deus! Você ouviu isso, Tora? Elizabeth Scott está suspirando de amores. Isso é real mesmo? – Ray sibilou, perturbado, deixando cair no chão uma papelada a qual levou junto várias canetas.

Revirei os olhos e tirei os dedos do teclado, parando no meio da digitação de uma frase.

– Eu posso ouvi-los, sabiam? – retruquei e bati na divisória. De onde estava podia ver o topo da cabeça de Tora, seu cabelo partido em duas tranças enquanto balançava de um lado para o outro ao som de uma música pop. – Estou bem aqui, tentando terminar de redigir a minha reportagem, se não se importam!

Foi a vez de Ray e Tora me ignorarem.

– Sabia que ela não voltou para casa ontem depois do encontro? – Ray contou em seguida. – Chegou hoje pela manhã.

– Uhhh, então alguém se deu bem ontem à noite! – Tora comemorou e riu. – Awn, eles fazem um casal tão bonito, o Homero e a Elizabeth.

– O nome do casal é Homeleth – corrigiu Ray bondosamente. – Se atualiza, Tora.

– Vocês dois podem calar a boca? – pedi, dessa vez mais alto.

Funcionou. Os dois ficaram em silêncio. Agradeci aos céus e retornei ao meu texto. Li a última sentença e voltei a escrever dali, eventualmente parando para reler todo o parágrafo. Eu tinha muita coisa para contar.

No último parágrafo, o qual eu estava redigindo no momento, abandonei toda a impessoalidade do texto jornalístico e desabafei. Como Elizabeth Scott, contei um pouco da minha odisseia resumida que foi a investigação de Slender até chegar ali.

Os disfarces, tudo o que eu consegui investigando Slender, Las Vegas, depois o México e o deserto. Por fim, a minha negociação com o empresário, a qual eu não sabia exatamente onde iria me levar.

Finalizei a reportagem mesmo assim, concluindo com uma reflexão sobre as pessoas e o que elas fazem com o poder e a influência que tem, o poder que o restante de nós permite que eles tenham e as consequências que isso trás para a nossa sociedade.

Porque, se você parar pensar, não existe o "bem" ou "mal" separados, digitei. Existem nós, humanos, que praticamos ações as quais tem reações. O "bem" e o "mal" são, de fato, ilusões, como o próprio Marco Slender me disse. No entanto, nós somos reais, e há um limite até onde podemos ir. Slender conhecia os limites e mesmo assim os ultrapassou, não se importou em destruir a vida de centenas de mulheres e querer fazer delas escravas sexuais. Apesar de tudo isso, o empresário continua livre, impune, porque ele tem status e condição suficiente para se manter assim. E, indiretamente, é o restante de nós que lhe concede tal poder, que vira o rosto para o outro lado e finge não ver o que homens como Slender fazem. É esse tipo de pessoa que você quer manter no poder?

Tudo Pela ReportagemWhere stories live. Discover now