23 - Expansão

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Crematória passava por um dilema cultural, puros e mestiços trabalhavam juntos pela primeira vez. Era de se esperar que alguns deles não se sentissem completamente à vontade, visto que fusão cultural era uma experiência relativamente nova para todos. Levaria tempo para poderem trabalhar em completa harmonia.

A água sempre foi um mineral raro por lá e, desde sua ascensão tecnológica, esse recurso passou a ser a maior preocupação global. Com o advento dos rebocadores de gelo, naves não tripuladas especialmente projetadas para encontrar e capturar cometas e asteróides, alguns sonhos tornaram-se palpáveis. Em certas épocas do ano, conjecturavam já ser possível vê-la em seu estado líquido, devido ao afélio com a estrela alfa. Mas exauriram-se todos os corpos hídricos ou mesmo planetas, com o raro mineral, no raio de algumas dezenas de anos luz. Com nenhuma possibilidade de rebocar água de fora daquela nebulosa, a iniciativa sofreria uma paralisação permanente.

Ainda assim era um clima de muita felicidade. Os esforços valeram a pena, por quase dez minutos foi possível vislumbrar chuva pela primeira vez em Crematória.

Não havia espaço para mestiços e soldados de baixa patente na celebração. Contavam com pouquíssimos oficiais nas diversas instalações militares espalhadas ao longo da linha equatorial. Uma licença especial foi concedida aos demais para que fossem à celebração.

Aquele evento marcava o fim de um período e sua importância era igualmente sabida por todos, mas poucos poderiam ver de verdade.

Esse capricho iria lhes custar muito, o planeta estaria menos protegido naquele dia, e não seria por incapacidade dos que permaneceram, apenas uma questão de números.

Cenário perfeito para uma tragédia.

Alertas dispararam em todas as bases, mas nenhuma atitude foi tomada.

— Certamente um falso sinal de alerta — Comentavam pelos corredores.

— Morte nas fornalhas para todos os mestiços. — incitavam outros.

Era notório que o alto comando de Crematória passava por contradições. Os mesmos que defendiam direitos iguais para todos foram os primeiros a acusar de traição os mestiços. Os ânimos se exaltavam. Os mestiços nada podiam fazer, pela força era impossível vencer, só poderiam esperar. Uma comissão extraordinária foi formada dando início a um julgamento coletivo onde sairiam apenas perdedores.

Como de costume em Crematória, todos os réus poderiam solicitar um advogado, mas muito improvável que algum, com coragem suficiente, aceitasse, já que, pela lei, todos sofreriam as mesmas penas, caso os acusados fossem condenados. Traição era sinônimo de morte.

Naquele julgamento a raça inteira seria julgada, mesmo que somente oficiais estivessem na lista, outros seriam perseguidos, presos ou mortos seu único crime foi terem nascido mestiços.

Nenhuma prova foi coletada, nenhuma evidência, nada mesmo. Mesmo assim o julgamento começou. Como era o costume o juiz leu as acusações e perguntou se alguém poderia defender os direitos dos acusados. Ninguém se levantou. Por lei o juiz repetiria a pergunta outras duas vezes. Um sorriso cínico brotou da face dele. Todos ali tinham conhecimento da inocência dos acusados, mesmo assim queriam a pena máxima.

Repetiu a pergunta pela terceira e última vez. Alguém adentrou apressadamente no salão. Uma jovem trajando um altírrel, uma espécie de burca usada por andarilhos crematorianos, essa vestimenta lhe cobria todo o corpo.

— Eu posso provar que são inocentes.

Olharam para ela espantados.

— E como pretende provar isso, mocinha? Somente alguém que tivesse presenciado tudo poderia nos contar o que houve em nossas bases. Somente um não é suficiente para provar coisa alguma.

Acesso IrrestritoWhere stories live. Discover now