Capítulo 6.

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"Existem muitas formas de viver. Também inúmeras de morrer.

A primeira parte era minha mãe, de otimismo inigualável, que sempre me dizia. A segunda era o que eu lhe respondia mentalmente. Hoje em dia, concordo mais com ela do que concordava na época. Infelizmente, também mais comigo. Dessa forma, talvez a existência dessas duas constatações óbvias pertença apenas em seu conjunto.

Não... Esse começo ficou uma merda.

O único motivo para não rasgar esta folha, como fiz com todas as outras, é que meu papel já está no fim. Quem pensaria em reunir papel no fim do mundo?

Preciso rir. Lógico que Manoela. De mais de uma maneira, é somente graças a ela que esse relato talvez chegue nas mãos de outra pessoa.

Minha esposa sempre disse que escrever ajudava a lidar com a dor. Em morte (é assim que eu chamo aquela pseudovida em que estava preso), debochei inúmeras vezes da mania de transformar suas experiências em fábulas nas redes sociais. 'Desesperada por atenção' foi uma das muitas grosserias que lhe dirigi.

Quer dizer, nunca deixei de achar brega — ainda assim, estou agora escrevendo uma carta de suicídio... —, mas hoje, vejo onde está o sentido. É no paradoxo que se encontra a epifania: você coloca palavras para fora na esperança que um dia serão lidas; porém, apenas pela incerteza desse acontecimento, você consegue ser verdadeiramente sincero.

A verdade, infelizmente, é muito simples, quase sem graça: não resta mais nada para mim nesse mundo. O que valia a pena ser vivido, eu já vivi. Não, perdão... Isso contradiz toda a frase do começo.

Definitivamente existem mais vidas para serem vividas, sou eu que não as quero. Nenhuma é perfeita, mas eu estava satisfeito com a que tive o prazer de experienciar no último ano. A verdade é que eu não tenho qualquer desejo de superar, fortalecer-me ou encontrar novos motivos para sorrir. Eu nunca fui bom nisso. Na verdade, esse foi o motivo para tudo ter sido tão difícil com Manoela antigamente.

Querido fantasma para o qual revelo meus segredos: durante toda a minha vida, eu fui um homem ruim. Não intrinsecamente cruel, mas uma pessoa cuja toxicidade era capaz de sugar qualquer resquício de vida do ambiente. Alguém que somente uma mãe poderia suportar (não por nenhuma razão, ela era a única familiar que ainda mantinha contato comigo).

Até um ano atrás, tinha certeza que o mundo havia me escolhido para saco de pancadas. Nasci pobre como um cachorro de rua e tão abandonado pelo meu pai quanto um. Antes mesmo que a minha vida começasse, estava sendo desperdiçada num emprego deprimente que por pouco me salvava da fome.

Nunca fui bom em esconder a raiva que tinha dessas circunstâncias. Quando não afastava as pessoas pelo meu comportamento irritadiço, era o discurso pessimista que desgastava qualquer laço. Mesmo o conhecimento que busquei adquirir só servia para dar vazão ao meu desgosto pela vida que eu tinha.

Se você me perguntar como, ou por obra de qual maldição, Manoela se apaixonou por mim ainda no colégio, sequer eu saberei te dizer. As mulheres se contentam com muito pouco.

Sensatos foram seus pais em tentar nos afastar. Funcionou no ensino médio (e eu, mesquinho e frustrado como era, descontei nela minha raiva, atribuindo-lhe ofensas das quais eu sequer entendia a origem), mas não impediu que eu a engravidasse nos primeiros meses após retomarmos o antigo namoro na vida adulta.

Só mesmo no fim do mundo para esse amor inexplicável funcionar. Manoela sempre foi meio fútil (para mim, um defeito imperdoável na época), mas uma boa pessoa. Tinha sonhos simples para a sua realidade e um otimismo inocente que me irritava. Eu era frustrado e fodido desde que me entendia por gente. Nunca gostei de nada que fosse mais feliz que eu e mesmo assim continuava a me afundar num pessimismo tedioso, insistindo que todos os outros estavam errados, presos numa Matrix da qual só eu me libertara.

Em FúriaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora