Capítulo 46.

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Talvez eu não tivesse percebido o quanto eu, Mei e Samuel estivemos perto da morte.

A adrenalina ao encontrar os Tormentas e a tensão de esperar por um possível combate nos deu a impressão de que tínhamos uma escolha quanto a aceitar sua ajuda, mas bastou pouco para entender o quão mal realmente estávamos. Principalmente Mei.

O que a salvou foi o fato de eu e Samuel termos dado prioridade a ela para o resto de água que nos restou após o ataque, porque um cachorro de seu peso e porte resistia muito menos do que nós. Miguel teve de iniciar os tratamentos antes mesmo de eu abaixar totalmente a guarda, pois minha Pastor apresentava extrema letargia e fraqueza.

Diferente dela, conseguir finalmente beber água (de coco, Marcos fizera questão de garantir para nós) e comer já foi o suficiente para que eu e Samuel nos recuperássemos um pouco, embora os sinais de insolação tivessem demorado a passar. Nossas peles ainda estavam queimadas pelo sol forte e as dores vieram com tudo, principalmente nas pernas e nos meus ferimentos. Tanto os meus machucados quanto os de Mei haviam infeccionado, mas Marcos e Miguel nos trataram, ofereceram antibióticos e trocaram nossos curativos. Além de terem aplicado as anti-rábicas.

Se não tivéssemos encontrado outro grupo, provavelmente teríamos morrido em poucos dias. Talvez nem isso.

E nada tornava menos apavorante estar entre tantas pessoas novas.

Eu e Samuel acompanhamos a rotina daquele grupo como se estivéssemos deslocados da realidade, em um sonho (ou pesadelo, só assim para explicar o constante palpitar no meu coração). Era quase como me ver novamente no Hospital pela primeira vez, enquanto ainda estava machucada e confusa após o confronto contra o grupo de Klaus, observando a familiaridade de uma rotina, mas com pessoas completamente estranhas para mim.

Aquele grupo contava com doze pessoas, dentre elas três crianças, e as duas gatinhas de Odin, Bia e Mia. Exceto a mais nova de todas, Helena, com apenas cinco anos, as outras pareciam participar ativamente do grupo. Vi a garota e o garoto de treze ou catorze anos manusearem armas, afastando-se para buscar lenha e até fazendo parte do revezamento para guarda.

O grupo era claramente chefiado pelo homem que nos abordou, Odin. Sempre estava com a jaqueta de couro característica, assim como a bandana amarrada no braço e os óculos escuros. Todos o tratavam com extremo respeito e tudo era reportado a ele. Nicolas, o homem alto e esguio de óculos, parecia o segundo em comando. Era evidentemente menos carismático e muito atento aos arredores, atendendo ao próprio grupo sem nunca tirar os olhos de mim e de Samuel.

Além deles, Bazuca, o homem de barba densa e corpanzil; Marcos, o médico que nos ajudou; um garoto um pouco mais novo ao qual todos se referiam como "Alemão" por causa dos cabelos loiros e pele clara; e a mulher mais velha do grupo, de cabelos crespos chamada Clara, todos tinham motos e jaquetas com aparência mais velhas e surradas, e deduzi que o Tormentas da Estrada já existia como clube antes do apocalipse.

Apesar de também usarem jaquetas e bandanas, Miguel, o veterinário e marido de Marcos; Heloísa, a mulher que encontramos na estrada; e Isadora, a garota simpática que nos trouxe provisões, pareciam destoar de alguma maneira. Descobri então que o motorhome pertencia ao Miguel, que se interessou pelos Tormentas e quis acompanhar o marido, e Isadora nos contou um pouco mais sobre o grupo na tarde seguinte à nossa chegada, quando veio nos trazer um pouco de feijão misturado com carne seca.

— Vocês estão se sentindo melhor hoje? — perguntou, tão simpática quanto no dia anterior. Os longos cabelos ruivos estavam presos acima da testa pela bandana marinho com padrões de ondas. — Se importam se eu sentar com vocês?

Eu e Samuel estávamos um pouco afastados do grupo, sob a sombra do motorhome, dessa vez não por desconfiança, mas apenas porque Mei não parava de rosnar para as gatinhas. Ninguém estava nos evitando, apesar de claramente sermos presenças estranhas ali — bem ao contrário, a maioria nos cumprimentou e perguntou mais de uma vez sobre o nosso bem estar. Marcos não escondeu as condições precárias em que chegamos.

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