Capítulo 31.

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Inspirei profundamente, na tentativa de me distrair do latejar na cabeça, mas me arrependi quase imediatamente. O cheiro pútrido da centena de cadáveres reanimados fez a dor piorar e a vontade de franzir o rosto ficar ainda maior.

Apesar do apocalipse frequentemente me colocar no limite, talvez nunca antes eu tenha sentido uma mistura de sentimentos tão intensa e conflitante quanto a daquele fim de tarde.

Era até difícil identificar o predominante. Vendo o sol se enterrar no horizonte, tornando as sombras escuras sob o céu acinzentado cada vez maiores, e sabendo que seria inevitável o momento em que a escuridão de uma madrugada sem lua engoliria tudo... sentia-me confortável para concluir que era o medo. Eu nunca temi o escuro, mas também nunca estive no escuro e cercada de zumbis.

Pelo menos, não de zumbis tão próximos. A poucos metros, meros passos, alguns até chegando perigosamente perto de encostar em mim. Eu odiava aquela técnica de Samuel, mas infelizmente tinha de admitir que era inteligente.

Mas era difícil fazer funcionar e isso até ele admitia. Não bastava se atirar de qualquer maneira no meio de um mar de zumbis, era preciso uma aproximação natural para se misturar entre as criaturas. No momento em que você despertasse atenção demais, desse qualquer motivo para eles desconfiarem que você era uma presa, estava tudo perdido.

Por isso, eu caminhei por quase três horas numa lentidão sufocante para chegar até ali. Vez ou outra, atraí a atenção de algum, mas apenas naquele interesse curioso que acabava esvaindo conforme não me alcançava, ou algum outro som captava sua atenção. Percebi também algo que Samuel não teve a chance de observar: era mais assustador estar em meio a centenas deles, mas também mais fácil para passar despercebida.

Em todas as vezes que eu e meu amigo fizemos aquilo, enquanto ainda estávamos feridos naquela cidadezinha esquecida por Deus, nunca nos arriscamos a atravessar locais com mais de algumas dúzias de criaturas. Era difícil passar completamente despercebidos quando não raramente éramos os únicos que se mexiam. Agora, enquanto eu vagava em direção aos muros que cercavam o complexo de prédios que era meu alvo, sequer havia sentido em tentar contar quantos zumbis dividiam as ruas comigo: até onde meus olhos alcançavam (mas eu não me atrevia a virar a cabeça para conferir, porque isso poderia chamar atenção deles), haviam criaturas prontas para saltar sobre mim mim a qualquer sinal de que eu era o que eles buscavam.

A menos de um passo para qualquer direção, havia pelo menos um zumbi. Durante meu cambalear, incontáveis vezes eu esbarrava em algum deles ou (e isso era mil vezes pior) eles quem encostavam em mim. No começo, achei que bastaria um toque para que percebessem que eu era uma humana, mas a verdade é que aquelas criaturas viviam esbarrando uma nas outras em seu eterno vagar sem rumo. Entre as centenas de milhares de zumbis que caminhavam por Blumenau, eu era apenas mais um deles.

Claro que eu só cheguei perto o suficiente para alcançar essas conclusões depois de proteger completamente meu corpo: além da jaqueta gasta de couro, da calça jeans e coturnos, usava também um moletom com capuz para cobrir minha cabeça. A intenção era, em caso de ataque, pelo menos conseguir escapar de uma mordida... mas a ideia parecia boa há uma hora atrás, quando eu ainda não tinha chegado na parte mais populosa da horda. Se qualquer um deles me atacasse e eu precisasse lutar para sobreviver, outras dezenas estavam a apenas um passo de me agarrar. Evitando ser comida viva, talvez eu apenas me condenasse à outra forma igualmente assustadora de morrer: soterrada pelos infindáveis corpos.

Por isso, eu mantinha o olhar a frente e a cabeça baixa, caminhando no ritmo vagaroso que eles impunham, um passo lento a cada tantos segundos. Meu nariz escorria com o frio do crepúsculo, mas eu não me permitia sequer fungar, ainda que duvidasse que aquele som fosse ouvido em meio aos rosnados, grunhidos e o barulho de solas de sapatos gastas arrastando no chão. Até minha respiração era lenta, para evitar qualquer mínimo movimento destoante dos outros. Mesmo naquele mundo, nunca nos atentávamos a algumas coisas: a forma como mexíamos as pernas ao caminhar, a intensidade de cada pisada, como mesmo uma inspiração produzia som... agora eu estava dolorosamente ciente de cada movimento meu, cada mísero som que escapava por acidente ou contração involuntária de quando eu me encolhia para evitar tropeçar ou colidir com um zumbi.

Em FúriaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora