Capítulo 47.

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Tomei um gole do café para molhar a garganta, àquela altura seca depois de contar a mesma história pela terceira vez.

Após a conversa com Odin e algumas horas de vigília na noite anterior, fui substituída para o turno da noite por Alemão — e descobri que, na verdade, seu nome era Luiz. Mais uma madrugada se arrastou sem que qualquer acontecimento alertasse a mim ou a Samuel e, pela primeira vez, concordamos que talvez estivéssemos exagerando em nosso receio... eles já poderiam ter nos matado, se quisessem.

Então, dormimos sem que nenhum dos dois ficasse de vigia na barraca.

Acordei me sentindo realmente descansada pela primeira vez em semanas, e ver Mei correndo pelo acampamento (àquela altura, as gatinhas de Odin simplesmente preferiam se esconder dela embaixo do motorhome e Mei entendeu que deveria ficar afastada) trazia um alívio bem-vindo. Durante a maior parte do dia, tentamos nos adaptar e auxiliar como conseguimos em sua rotina, mas logo acabávamos nos distraindo com alguma conversa.

No começo, temi que o interesse que tinham em puxar assunto era apenas na tentativa de arrancar informações nossas, mas logo ficou evidente que a maioria tinha tanto interesse em compartilhar quanto em ouvir. As conversas escalavam em uma fascinação mútua onde comparávamos experiências, contávamos sobre coisas que conquistamos no decorrer do apocalipse e, por mais errado que parecesse falar assim, fofocávamos como senhorinhas desocupadas. Descobri que em Canoas, o antigo grupo de Isadora e de outros membros dos Tormentas, um dos motivos para tentarem derrubar o líder foi porque a mulher de um dos rebeldes o estava traindo com ele. Aos sussurros, até revelei para Isadora e Heloísa que eu, de certa forma, namorava dois garotos.

Quando uma lágrima escorreu de meu rosto ao lembrar que só sabia do paradeiro de um deles, a mulher para quem apontei um fuzil no meio da estrada há alguns meses quem me consolou.

Era estranho, assustador e profundamente reconfortante sentir paz em meio a outras pessoas novamente. Em nenhum momento eu deixei de imaginar cenários em que éramos traídos, torturados e mortos, mas cada instante que passávamos ali, cada interação inocente que compartilhamos com eles... simplesmente me trazia uma esperança que imaginei ser impossível sentir de novo. Eu tinha medo de ser otimista, mas uma coisa eu e Samuel concordamos ser inegável: aquele grupo parecia longe de passar por necessidades. Uma tranquilidade contagiante deixava evidente que não havia qualquer interesse em nos matar, ou entrar em conflito por suprimentos.

Mesmo assim, tive cuidado ao contar nossa história para Odin na noite anterior. Falei onde encontramos com o grupo de Leonardo, sobre os ataques que sofremos e os conflitos e alianças em que eles resultaram... mas não contei onde estava o grupo do Hospital, nem falei para que cidade eu e Samuel estávamos indo. Percebi em seu olhar a vontade de perguntar, mas ele não tentou forçar qualquer resposta.

E mesmo assim, na tarde seguinte, após eu contar novamente a história para o resto do grupo (resguardando os mesmos detalhes), ele respondeu quando Samuel perguntou:

— Vocês por um acaso... não viram essas pessoas? — murmurou, sua interrupção chamando atenção de todos. Nenhum deles ficou sabendo sobre o autismo de Samuel e simplesmente encararam seu comportamento quieto e recluso como uma particularidade qualquer. — Acho que nunca os descrevemos de fato...

Odin abriu a boca para responder, mas Samuel começou a falar sobre as pessoas das quais não soubemos os paradeiro. Descreveu a sua mãe, Guilherme, Melissa, Victória, e também mencionou Lilian e Caio, que tínhamos certeza que haviam partido com eles. Quando o homem se preparou para responder, meu amigo também mencionou um possível segundo grupo, e lembrei que Bruna, Darlene e Antônio foram expulsos do Hospital por Jin, pela suspeita de ainda estarem envolvidos com Adão. O líder ouviu respeitosamente, mas infelizmente nenhum daqueles detalhes mudou sua resposta:

Em FúriaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora