Capítulo 56.

863 184 251
                                    

Errei duas vezes a fechadura antes de finalmente conseguir enfiar a chave, apenas para perceber que a porta do meu apartamento estava destrancada o tempo todo. Não sabia se ria de mim mesma ou se me achava uma idiota, então fiz os dois.

Chequei o horário no relógio de pulso e vi que ainda faltavam alguns minutos para uma hora da manhã. Quando eu era mais nova, vez ou outra gostava de me imaginar como uma mulher adulta, voltando do trabalho ou de alguma festa para o meu próprio apartamento. Naqueles devaneios, eu era um pouco mais velha do que meus atuais 18 anos e, claro, o fato de eu ter um apartamento próprio não se devia ao fato de um apocalipse zumbi ter dizimado o mundo. Aliás, eu também não estava voltando de uma festa ou do trabalho. Ainda assim, foi estranhamente satisfatório e, naquele momento, senti como se eu fosse capaz de dominar o mundo.

Provavelmente era apenas o efeito da garrafa de vinho que eu e Toni secamos.

Naquela noite, após o jantar, finalmente aceitei o convite de ir até seu apartamento — o que tecnicamente era algo proibido, mas vários soldados discretamente quebravam essa regra e ninguém se importava tanto com o que faziam nos apartamentos uns dos outros. Ele já estava ciente de que meu único interesse era em sua amizade, inclusive, falou sobre como esperava um dia ter a chance de conhecer Guilherme e Leonardo.

Nossa conversa se estendeu por horas, regada a um vinho que ele trouxe escondido de uma busca por mantimentos. Bebidas alcoólicas eram um assunto delicado, pois eram terminantemente proibidas... pelo menos, para o resto da população, que não tinha acesso aos suprimentos a não ser através do que era distribuído. Os soldados às vezes conseguiam pegar algumas (e isso acabou criando um pequeno mercado negro) e em geral faziam vista grossa uns para os outros, mas absolutamente qualquer problema gerado pelo consumo de álcool não seria perdoado.

Eu nunca fui de beber muito, mas isso era em um mundo em que os pesadelos não atrapalhavam constantemente o meu sono. Ultimamente, eu acordava suando frio às três horas da manhã e a ansiedade não me deixava pregar os olhos até, pelo menos, os primeiros raios de sol começarem a brilhar — que era mais ou menos a hora de levantar. Em momentos como esse, sabia que um pouco de álcool (nem tão pouco) pelo menos me faria apagar até o amanhecer.

Essa constatação infelizmente me fez lembrar de Melissa. Nunca tive coragem de impedi-la de beber depois do que ela passou, e finalmente começava a entender que ela talvez enfrentasse aqueles mesmo problemas. Contei sobre ela para Toni e pensar no quanto eu sentia falta dela me fez chorar tentando imaginar se estava bem. O que se transformou em um pranto quando também lembrei que não via Mei há mais de uma semana, e minhas únicas notícias eram as que Toni trazia para mim.

Depois de chorar até me sentir exausta, foi quase cômico como pareceu ser a vez de Toni quando ele começou a desabafar sobre como tinha dificuldade de encontrar um propósito naquele mundo. Choramos juntos, conversamos sobre o passado e tivemos até a coragem de falar sobre ter esperança para o futuro. O vinho ajudou um pouco, assim como me ajudaria a fechar os olhos por uma noite inteira assim que eu finalmente chegasse até a cama.

— Onde você estava?

Aquela voz vinda do mais completo nada me fez ter um sobressalto e deixei um gritinho de susto escapar, ao mesmo tempo que buscava na lateral da minha perna por uma faca no coldre.

Apesar do coração disparado, não demorei a encontrar o dono da voz. Até porque, ele não parecia particularmente interessado em se esconder, sentado ao lado da janela aberta, por onde um pouco de iluminação da lua cheia entrava.

— Meu Deus, Samuel! Você quer me matar do coração? — Por vários segundos apenas o encarei, incrédula, até a ficha de que ele realmente estava na minha frente finalmente caiu. — Meu Deus...

Em FúriaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora