Capítulo 54.

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Apesar de toda a situação em que me encontrava, o medo por mim, por Mei e até por Samuel (e os pesadelos que voltaram com ainda mais força desde que comecei a dormir sozinha), pelo menos uma coisa permaneceu dentro da normalidade:

Eu ainda sabia lidar com zumbis.

Dizer que eu não sentia medo seria uma mentira que já não fazia sentido propagar. A cada segundo em que pisava do lado de fora de um local seguro, meus sentidos me afogavam com uma onda de pavor e receio, fazendo-me sobressaltar diante de qualquer mínima movimentação estranha. Ainda assim, estava suficientemente acostumada a engolir aqueles sentimentos. Não era fácil e não se tornou fácil com o decorrer do apocalipse, mas pelo menos desenvolvi prática.

Então, no momento em que me entregaram um cassetete e um facão (não foi nenhuma surpresa não me darem uma arma de fogo) quando pulamos para fora da caminhonete, nem mesmo a amargura de Ana e as poucas palavras que ela parecia disposta a me dirigir, impediram-me de saber exatamente o que fazer.

Pela forma como me encarava, provavelmente achava que eu choraria quando me mandou ir na frente do grupo de oito pessoas, todos sob sua liderança. Eu mal lembrava o nome dos homens e das mulheres que se apresentaram de forma sucinta quando me juntei a eles naquela manhã, mas dividimos a mesma missão de entrar em um centro comercial em busca de uma farmácia que ficara fechada desde o começo do apocalipse. Estávamos em uma cidade afastada, em uma avenida onde outrora diversos zumbis se concentraram, mas que com o passar do tempo, haviam se espalhado pelas ruas ao redor e agora possibilitavam uma invasão coordenada ao local.

Eu não queria provar nada para ela quando apenas assenti e obedeci a ordem, meu único pensamento sendo de não arranjar problemas, conseguir recuperar minha cachorra e ir embora daquela cidade o mais rápido o possível.

Eu tentava não pensar muito no que Samuel faria. Devia ser óbvio para mim que ele ficaria com a mãe, mas, ao mesmo tempo, não conseguia realmente me acostumar com a possibilidade de que talvez eu passasse a viajar sozinha (sempre com Mei, claro). Não sabia se era por egoísmo meu ou se ele também sentia a mesma estranheza que aquele lugar me passava, ainda que parecesse uma base perfeitamente funcional e segura — pelo menos, para o próprio povo.

Não cheguei a nenhuma resposta porque um zumbi tentou morder meu rosto e fui lembrada que, para almejar ir embora com Mei, precisaria primeiro sobreviver ao que quer que Ana e Pantera estivessem planejando para mim.

Nossa primeira saída em busca de mantimentos se saiu bem, com um único contratempo envolvendo um dos homens de Ana, um garoto jovem que não conseguia conter a ansiedade muito bem e se viu cercado de criaturas, então obrigado a se separar do resto do grupo para fugir deles. Ofereci-me para resgatá-lo (eu nem precisava argumentar que não fazia sentido temer que eu fugisse, afinal Mei continuava refém), mas o revirar de olhos de Ana me evidenciou que não foi a atitude certa.

Na verdade, nenhuma atitude parecia certa com ela.

Apesar de termos conseguido resgatar o homem que se separou do grupo (e de eu ter, afinal, participado do destacamento de resgate), invadir a farmácia e saquear todos os medicamentos, aquilo não pareceu me garantir nem um pingo de boa vontade de nenhuma daquelas pessoas. Nem mesmo quando, três dias depois, nossa segunda missão também foi um sucesso.

Havia ficado claro que Ana não queria trabalhar comigo tanto quanto eu queria ficar longe dela, justamente pelo rancor que ainda carregava pelo homem que eu matei. Ismael era o seu nome. Eu o ouvi algumas vezes em conversas sussurradas entre os integrantes do grupo que respondia à Ana, e até da boca da própria. Ele não era pai de nenhum deles, mas havia se tornado uma figura paterna dentro daquele grupo.

Eu também vi novamente o homem que se chamava Raul. Ou, pela primeira vez, afinal minha única interação com ele foi quando me imobilizou pelas costas e me deixou desacordada com uma coronhada quando eu e Samuel fomos abordados pelo seu grupo. Deduzi que era ele pelos quase um metro e noventa e cinco, corpanzil e braços musculoso, mas principalmente pelo olhar de desprezo que me dirigiu ao me ver no refeitório, antes de seguir para a mesa com o resto dos seus companheiros. Ficou quieto por vários minutos, mas quase no final do almoço, riu com vontade de uma piada que algum deles contou.

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