Capítulo 48.

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Parando para pensar, talvez Mei preferisse o mundo com os zumbis.

Quer dizer, às vezes ela simplesmente nunca mais via algumas pessoas de quem gostava, mas por outro lado, mais do que ocasionalmente comia a nossa comida. E podia cavar buracos sem se preocupar com uma bronca da minha avó.

Naquele momento, ela estava satisfeita exercendo aquele direito no quintal da casa de beira de estrada que provavelmente já era esquecida pelo mundo antes mesmo do apocalipse. Vendo suas patas imundas de lama, cogitei a possibilidade de dar um banho nela antes de seguirmos viagem, enquanto contemplava preguiçosamente a vista da varanda para a cachoeira.

Faziam dois dias que nos despedimos dos Tormentas e seguimos viagem em direção ao oeste e, por ironia do destino, chovera tanto na tarde anterior que fomos obrigados a parar no primeiro lugar que encontramos — pelo menos, dessa vez, tínhamos encontrado alguma coisa.

Depois de quase termos morrido de desidratação, eu e Samuel tampouco nos sentíamos capazes de manter o mesmo ritmo de caminhada de antes, por isso não ficamos particularmente chateados pelo descanso obrigatório. Praticamente não havia comida que já não tivesse apodrecido ou estivesse em embalagens devoradas por ratos, mas felizmente os Tormentas nos haviam cedido suprimentos o suficiente para mais de uma semana de viagem, incluindo ração para a Mei. Também aproveitamos para recolher a água e fervê-la para reabastecer nossos cantis, embora nem sequer estivessem vazios.

A casa era pequena e não havia muito o que fazer nela. Naquela noite, enquanto estava tentando refazer meu sidecut usando uma tesoura e um pente, movida pelo tédio do clima chuvoso, descobri que Samuel havia pegado um livro emprestado com Nicolas antes de ir embora — fez questão de dar ênfase na palavra emprestado e na necessidade de reencontrar os Tormentas para devolvê-lo algum dia —, por isso tinha algo para ler. Comentei o quanto aquilo era uma traição, já que eu e ele gostávamos de ler juntos e eu não tinha nenhum livro, então meu amigo simplesmente começou a ler em voz alta enquanto eu lidava com o cabelo. Apesar de só estar querendo provocá-lo, fiquei genuinamente feliz com aquilo.

Por um segundo, peguei-me pensando em algo como "A Rebeca de um ano atrás jamais desconfiaria que estaria sobrevivendo a um apocalipse com alguém que conheceu há menos de um ano", então me toquei que... talvez a Rebeca de um ano atrás já soubesse. Estávamos na metade do segundo ano de apocalipse e, há exatos um ano atrás, já vivíamos juntos no condomínio.

Aquela realização me fez pensar de novo nas palavras otimistas de Odin. Em como estava Porto Alegre, que ele alegava já ter grupos em alianças... Imaginar um mundo em que não houvesse mais o medo de encontrar novas pessoas.

Quase como se soubesse que eu precisava de alguém com quem divagar, Samuel apareceu atrás de mim. Trazia duas canecas de café fumegante na mão e me ofereceu uma. A chuva do dia anterior já havia acabado e, dentro de alguns minutos, provavelmente voltaríamos para a estrada.

Havíamos decidido manter o plano inicial de viajar a pé, apenas dessa vez evitando a falta de cuidado no planejamento de nossas noites. O encontro com os Tormentas podia ter nos salvado, mas não apagou as memórias ruins de quando eu e Hector chegamos a um local completamente novo sem nos preocuparmos em sermos discretos.

— Obrigada. — Aceitei a caneca que ele me ofereceu, sentindo o calor da cerâmica esquentar minhas mãos. As estações no sul sempre eram instáveis e não era raro que o inverno demorasse mais do que o habitual para chegar, mas no meio de julho como estávamos, finalmente os dias frios começavam a se mostrar. — Você já tá pronto para ir?

Samuel me acompanhou, apoiando os braços no corrimão da varanda de que circundava a parte de trás da casa. Era uma construção de madeira simples perdida em meio a terrenos onde outrora provavelmente haviam cultivado plantações, mas agora só havia uma grama amarelada que cresceu demais. A vários metros dali havia um desfiladeiro, com uma cachoeira descendo entre as paredes de pedra do lado oposto. Era um contraste notável que aquela casa tão simples tivesse uma vista que podia fazê-la valer milhões — se não estivesse perdida no mais completo nada, claro.

Em FúriaWhere stories live. Discover now