Capítulo 20.

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No primeiro dia sozinha, mesmo com o gosto amargo da partida de Samuel na língua, evitei pensar na sua falta de experiência ou em como estava se arriscando por mim. Suas duras palavras se repetiam incansavelmente em minha cabeça e, na ânsia de me sentir útil, tentei ajudar apenas não piorando tudo.

A fraqueza ia e vinha, mas depois de me alimentar com a lentilha (já fria) que ele havia preparado e tomado a água previamente fervida, consegui pelo menos sustentar minha consciência. Todos os meus músculos doíam, a fraqueza da febre tornando mesmo tarefas simples como lavar as gazes usadas, algo que exigia um esforço monumental.

Ainda conseguia ouvir claramente os rosnados das criaturas na casa ao lado, e pelo menos achava que a comoção gerada com o som do portão e o vidro quebrado os manteria concentrados no terreno vizinho pelos próximos dias. Infelizmente, isso não tornava menos desolador ter o grunhido dos mortos como única companhia.


✘✘✘


No segundo dia, a dor na perna tornou novamente impossível caminhar.

Com lágrimas escorrendo sem parar dos olhos, lutei contra a aflição e usei minhas últimas forças para reunir tudo o que julgava útil na mesa de centro da sala. Pacotes de bolacha, o resto da lentilha, duas garrafas de água, a lanterna que Samuel deixou para mim e um facão de cozinha.

Cada inspiração fazia parecer que todas as minhas costelas estavam sendo repetidamente quebradas, e a tosse às vezes se tornava tão desesperada que me deixava cuspindo sangue. Não sabia se estava alucinando, mas mesmo minhas queimaduras cicatrizadas voltaram a doer.

Naquele dia, toda a dor e o medo viraram combustíveis para a raiva. Raiva dos meus inimigos, raiva por não garantir que todos haviam sido massacrados, raiva por não ter atirado primeiro desde o início. Senti uma raiva inexplicável até da mulher que nos pediu ajuda na estrada, e mais raiva ainda de Leonardo por dar a ela o benefício da dúvida. Mesmo que ela não nos fizesse mal, não tratá-la como um perigo iminente era o que nos deixava vulneráveis. Se estivéssemos prontos para a guerra desde a primeira vez em que Hector e eu pisamos em Blumenau, teríamos aniquilado todo o grupo de Klaus no nosso primeiro encontro.

Mas, acima de tudo, senti muita raiva daquele mundo. Da dor que me torturava, das perdas que precisei enfrentar, das consequências extremas por decisões que nenhum de nós esteve pronto para fazer.

Quis gritar, mas nem isso eu podia. Tive o impulso de enfiar minhas unhas nas palmas e apertar até sair sangue para acalmar aquela sensação de sufocamento, mas sequer conseguia mover uma das mãos. E Samuel disse que a única maneira de ajudá-lo era não complicando ainda mais o processo de cura.

Então chorei, porque nem raiva eu podia sentir.


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Com o torpor da febre, o terceiro dia se misturou ao quarto e não soube dizer qual era qual. Decidi talhar linhas na mesa de madeira para contá-los.

Vomitei meu almoço, e não consegui segurar mais nada no estômago desde então.

Quando fui obrigada a lutar contra a agonia e praticamente me arrastar até o banheiro, aproveitei para trocar os curativos que eu não mexia há dias. Minha mão esquerda não sangrava mais, mas a gaze na perna estava úmida de sangue e pus. Quando a desenrolei, chorei de desespero vendo a aparência terrível da ferida infeccionada.

Liguei o chuveiro para limpar o corpo coberto de suor e tentei lavar os machucados, mas a dor era insuportável. A água parecia glacial em contato com meu corpo febril. Minhas roupas também estavam encharcadas, então as deixei na pia e fui procurar por peças secas em um dos quartos. Quando finalmente voltei ao sofá, talvez depois de meia hora, estava tão exausta que apenas não desmaiei porque um ataque de tosse fez eu cobrir meu punho inteiro com sangue.

Em FúriaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora