Capítulo 37 - Mil lutos

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Ao chegar a seu apartamento, as lembranças de Ettiénne lhe vieram à mente, o frio da sala e os móveis bagunçados aumentavam sua tristeza silenciosa, depois que Nicolas nascera, Rachel mudara rapidamente seu comportamento, esforçava-se agora por ser um mulher forte, um exemplo para seu filho. Uma profissional exemplar, mas no fundo só ela sabia o que enfrentava internamente, o curso de psicologia lhe conferira um olhar mais crítico e aguçado sobre a complexidade das ações e dores humanas, no entanto, continuava sendo humana. Guardava em si uma coleção de lutos e ainda alguns hologramas, apesar de não ter mais simulados eles ao vivo, mantinha contato com a base de dados que representava seu pai que por intermédio de Bourdieu, havia evoluído muito na última década e já era capaz de executar ligações e perceber alterações na voz que indicassem nervosismo ou tristeza. Pensava consigo "É talvez eu ainda seja a menina dos hologramas", apelido que ganhara no colégio após vazarem informações de que ela havia comprado hologramas representar seus parentes mortos.

Sua descrença na bondade humana, alimentada desde cedo, era sacudida por um mundo em profunda mudança, mas no fundo sempre lhe vinha à boca o gosto amargo da desconfiança, aguardava sempre uma reviravolta em cada ato aparentemente altruísta, uma razão oculta, torpe que o justificasse sobre a lógica do benefício próprio. Não conseguia acreditar que aqueles alienígenas portassem intenções realmente despretensiosas, verdadeiramente solidárias. Para Rachel, a moralidade nada mais era que uma espécie de maquiagem social para enfeitar o interesse próprio. Naquela sala fria contemplava um quadro de família, na foto tirado nos Alpes Suíços, Rachel dava as mãos para Nicholas e esse para Laurent, o ex-esposo de Rachel. "Bem metafórica..." Apenas o filho parecia uni-los, como uma elo fraco de barbante prestes a se desatar e se questionava mentalmente se a provocante e desprezível Louise Diderot teria sido de fato o pivô da sua separação com Laurent "Talvez já estivéssemos separados, mesmo no dia de nosso casamento".

Um véu negro de culpa vira e volta a abatia, questionava-se se havia sido dura demais com Laurent ao longo dos anos em que viveram juntos, quando se conheceram ele, também estudante de psicologia na época, era adepto da abordagem de Moreno, o Psicodrama. "Sempre perfeito em suas interpretações, tanto que virou ator mesmo". Laurent após concluir o curso se dedicou a teatro e tornou-se um ator profissional foi nesse contexto que conheceu Louise. "Feitos um para o outro... Eles se merecem!" Pensava enquanto escondia o quadro sobre estante em um local fora de seu foco de visão. Ambos pareciam estar sempre livres, distantes da maior ditadura a qual todo ser humano está submetido: a da própria identidade. Laurent tinha mil faces, mil disfarces, vivia trocando de papéis, de cidades, não conseguia se prender a nada, talvez nem a si mesmo e esse também parecia ser o espírito de Louise. Enquanto Rachel mantinha-se presa a seus fantasmas, a seus mil lutos distintos e balbuciava sozinha contendo a raiva "Você é um irresponsável, Laurent! Será que você nunca entendeu que seu filho precisava de um pai de verdade".

Os Novos EstrangeirosWhere stories live. Discover now