02- Promessa Vazia

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Aman era uma pessoa tão circunspecta que era meio difícil distinguir quando o assunto era sério ou genérico. Para ela, todos os assuntos eram muito importantes. Por exemplo, o "problemão" dela tratava-se de vestidos. É, isso mesmo. Vestidos! Ela estava indecisa entre dois vestidos que o alfaiate Igor dispusera para venda. Quando eu disse a ela que podia ter me dito qual era a dificuldade sem me matar de preocupação, ainda ficou brava! Mas uma outra dúvida martelava minha cabeça.

— Aman. Por que comprar vestidos agora? Você pretende levá-los na missão?

— É claro que não, cabeça de elemental de ar. Quem usaria vestidos numa missão de campo?

— Sei lá! Vai que você resolveu se impor um nível de dificuldade maior...

Minha amiga me encarou com cara de quem escuta um louco cantando uma ópera. Algo entre pena e exasperação.

— Adri, não sei de onde você tira essas ideias. Você tomou muito sol hoje?

— Aaaah, deixa pra lá! Mas me conta logo o porquê dos vestidos!

— Quero comprar um, oras! Tô há um mês fora! E já vou ter que acompanhar a senhorita, não custa nada vir comigo. De vez em quando é bom ter um tempinho pra mim. Antes de ser coletora eu sou uma dama, está bem?

Nossas discussões era sempre muito divertidas. E lá fomos nós às compras.

Minha querida amiga era péssima em fazer qualquer coisa que envolvesse roupas, maquiagem e perfumes. Se dependesse dela, andaria como uma mendiga. Não é à toa que sempre me arrastava para essas ocasiões.

No final, ela não conseguiu se decidir e acabou levando os dois vestidos. Essa era Aman e sua maneira prática de resolver as coisas.

Então, voltamos para casa. Finalmente pude tirar meu uniforme fedorento, tomar um banho e descansar um pouco.

******************

Abre as janelas e deixa a esperança entrar na tua casa trazida pelo vento da tarde.

Eu estava caída no chão. Um homem – um garoto – debruçava-se em minha direção, com a palma da mão estendida. Ele falou qualquer coisa sobre janelas e vento, mas não entendi direito. Não estava raciocinando. Não conseguia alcançar seus dedos, que de repente ficaram muito distantes. Não sabia quem ele era, só via a pele vermelha de seu braço e tentava me erguer. Eu tinha que levantar! Mas quanto mais tentava, mais parecia que me afundava. Aquele braço solícito se afastava cada vez mais, enquanto o meu desespero aumentava. Não conseguia falar, portanto não podia gritar para que ele não se fosse. Pensei nas células do meu corpo e juntei toda a energia delas, tanto para me endireitar quanto para gritar e então...

...acordei.

Estava empapada em suor, como se tivesse feito um grande esforço. Que raios fora aquilo? Por que eu estava tão desesperada no sonho? Não fazia ideia de quem era o garoto que vi. Sonho mais besta!

Coloquei os pés para fora da cama, quase achando que não conseguiria movê-los. Mas eles me obedeceram como sempre e pisaram o chão da maneira habitual. Observei meu quarto e não havia nada de diferente. Cama encostada na parede esquerda, porta fechada logo à frente. A janela acima da cama também permanecia bem cerrada. Minha escrivaninha estava como a deixei na noite anterior, meus estudos de música e canto organizados numa pilha de papéis ao centro, com minha flauta ao lado. Me considerava uma cantora mediana, mas as pessoas me achavam muito boa. Até faziam piadinhas entre minha espada cantante e eu. Nossa, eram realmente muito engraçadas as piadas. Só que não.

O guarda-roupa estava com a porta ligeiramente aberta, sendo o vento o presumível responsável. Nada surpreendente. Fui até ele, ainda meio presa nas sensações do sonho, certa de que poderia cair a qualquer instante. Mas o alcancei sem nenhum problema, agarrei uma toalha para secar o suor do rosto e encostei a porta.

Voltei a encarar o quarto e vi minha pequena bolsa de provisões, jogada no chão perto da cabeceira da cama. Será que era isso? Será que eu estava nervosa porque já era a véspera da minha partida? Por isso o sonho idiota? Mas me parecia que aquelas imagens nada tinham a ver com o que estava acontecendo comigo no momento. E eu nem me sentia tão nervosa assim.

Bufei e decidi deixar para lá. Não ia conseguir chegar a nenhuma conclusão que fizesse sentido.

Saí do quarto e fui atingida por um maravilhoso cheiro de café recém preparado. Meu pai com certeza já estava de pé. Com efeito, o encontrei à mesa, saboreando uma xícara do líquido negro, junto com algumas torradas. Abriu um sorriso triste quando me viu.

— Adri. Dormiu bem, querida? Sente e sirva-se.

Me proporcionei uma caneca gigantesca. Sabe-se lá quando eu poderia experimentar café de novo. Larguei-me na cadeira em frente a meu pai e surrupiei uma de suas torradas. Ele me encarava com aquele sorriso pensativo, os olhinhos bem estreitos em sua face negra. Sua pele era um pouco mais escura do que a de Imani.

— Tudo bem, pai?

Ele foi pego de surpresa com a pergunta e demorou uns segundos para responder.

— Ah... claro que sim, filha. Estou contente por você tentar ingressar numa profissão tão prestigiosa. Você vai elevar muito nosso padrão. Um simples agricultor como eu não consegue muito mais que o necessário para a subsistência.

Observei meu pai com uma ruga no meio das sobrancelhas. Que discurso mais falso!

— Pai. Fala sério. Não deu pra acreditar numa vírgula do que o senhor disse.

O senhor Raul ficou sem graça por um instante. Olhou para o conteúdo de sua xícara, envergonhado. Então juntou coragem e falou.

— Adri, eu estou tentando não ser autoritário, ter uma atitude positiva. Mas a verdade é que eu estou com muito medo, filha! E se Aman não for cuidadosa como de costume? E se ela se esquecer de dar alguma orientação importante? E se você se machucar? E se vocês duas se machucarem?

Senti uma pontada enorme de amor por ele. Estava tentando refrear seus instintos mais básicos de proteção para que eu deixasse o ninho que ele sempre cuidou com tanto zelo. Meu pai era assim, uma pessoa muito amorosa, mas que tentava sempre agir do modo mais racional possível. Dei a volta na mesa, me agachei em frente à sua cadeira e lhe dei um abraço apertado.

— Pai, relaxa! Nós só vamos ali no DD pegar um lixo velho. Nada vai dar errado.

— Sei. Nada pro seu velho pai se preocupar, não é? Já estou com 51 anos, quero morrer antes de você. — disse ele, com um sorriso um pouco mais verdadeiro dessa vez.

— Pai! Não fala assim!

— Falo sério, Adri. Uma semente nunca deixa de existir antes da árvore. É ilógico, não natural. E assim deveria ser também com os nossos filhos.

Não tinha palavras para responder àquilo, então simplesmente o envolvi em meus braços mais uma vez. Ele devolveu o abraço, muito emocionado.

— Nada de mal vai acontecer, pai. Prometo.

Era uma promessa vazia. Mas eu não sabia disso na ocasião.


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Essa Adri anda muito misteriosa... Do que será que ela está falando? Não percam os próximos episódios neste mesmo Watt-canal XD
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Dente de Leão -- Uma breve história anterior a Perna de MagiaWhere stories live. Discover now