20- Fundo do Poço

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Liam. Ele tocava meu rosto delicadamente enquanto subia e descia em cima de mim. Me sentia bem. Eu o amava e ele correspondia. Sua mão deslizou até a minha nuca e apanhou um chumaço de cabelos vermelhos, me provocando mais arrepios de prazer. Nossos corpos dançavam numa sintonia úmida de suor.

Até que a mão que agarrava meus cabelos se juntou com a outra ao redor da minha garganta.

Me lembrei. Alexia. Aman. Liam havia matado as duas. E agora só faltava a mim. Comecei a me debater. Minhas unhas arranhavam seu rosto e pescoço, mas o aperto não afrouxava. A agonia parecia eterna mas eu não perdia as forças. Ficava sentindo a pressão na traquéia e nunca desmaiava. Me debati tanto que acabei caindo da cama.

O impacto com o chão duro me trouxe de volta à razão. Aos poucos, a frieza da madeira me fez perceber que eu estava tendo um pesadelo. Meu coração estava aos saltos. Eu ainda podia sentir os dedos de Liam ao redor da minha pele.

Levantei os olhos para o quarto. Estava como sempre. Muita luz entrava pelas frestas da janela. Que horas deviam ser? Será que eu dormira por muito tempo?

Imani irrompeu pela porta. Veio correndo até onde eu estava desabada, passou os braços ao redor de mim e me ajudou a sentar na cama. Eu podia ouvir vozes discutindo na cozinha. Então ouvi uma voz bem perto da porta, no entanto, seu dono estava fora de minha visão.

— Imani, tudo bem se eu entrar?

Era Akia. Imani observou meu rosto, pedindo permissão.

— Entra logo, Akia. — respondi, cansada.

Então ele apareceu, seu cabelo ainda amarrado naquele coque recatado. As vozes continuavam discutindo atrás dele. Uma pertencia ao meu pai. A outra...

— Desculpe por isso — falou Imani, num tom baixo, envergonhado — minha mãe veio junto com a gente ajudar. Ela está dando um bronca no seu pai, porque ele... Bem, por causa da bebida.

A mãe de Imani havia faltado na escola? A senhora Marina dava aula para as crianças entre 6 e 12 anos de nossa vila. Eu podia ouvir as recriminações dela, que flutuavam até meu quarto:

— Você é o responsável por ela! Devia estar cuidando dela e não arrumando mais problemas! Não acha vergonhoso que duas crianças tenham que vir aqui todo dia pra ver se vocês dois ainda estão vivos? Eles já estão fazendo isso há duas semanas! Pelo amor de deus, Raul, a Adriana precisa de você inteiro, em sã consciência!

Abracei Imani com força. Apesar de eu enxergar a verdade nas palavras da senhora Marina, me sentia mal por meu pai. Sabia que não fazia aquilo de propósito. Era porque ele não conseguia lidar com certas coisas, o medo o dominava e perdia o rumo. Era normal tentar esquecer um pouco as preocupações, não era?

— E não me venha com a desculpa de que esse é o seu jeito de lidar com as preocupações! — a senhora Marina gritou, como se estivesse lendo meus pensamentos — Existem mil maneiras de lidar com uma situação difícil sem ter que se afundar entre garrafas! Sem ser leviano! — Houve uma pausa mínima — A menina precisa de você. Será que não entende que vê-lo assim vai deixá-la ainda pior? Já não bastou tudo o que ela presenciou com Alexia e Amanda? Ela ficou tão em choque que mal conseguiu sair da cama! O que é preciso dizer para que entenda isso?

Senti um aperto no peito ao escutar o nome das duas. Meu pai não dizia uma palavra. Podia sentir de longe a vergonha que o consumia. Ele sabia que estava errado. Mas como arranjaria força para se controlar?

Então sons de vidro se estilhaçando irromperam. A senhora Marina estava quebrando as garrafas de papai. Mas não sabia daquelas que tinham esconderijos.

Dente de Leão -- Uma breve história anterior a Perna de MagiaOnde histórias criam vida. Descubra agora