35- Irrealidade

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Eu corria pelas ruas vazias de Vila Arcana. Àquela hora da manhã as pessoas levantavam para cuidar de seus negócios, os soldados patrulhavam cada beco. Mas não naquele dia. Era possível sentir a luta no ar. Poderes e magia se chocavam, reverberando por um longo caminho até encontrar a vila, chacoalhando os ossos e o emocional dos habitantes.

Eu sabia exatamente onde eles estavam. Era fácil perceber onde se encontrava a zona de conflito.

Passei pelo arco de saída, sem nunca parar. Corri, corri e corri, o mais rápido que minhas pernas aguentavam me levar. Já não sentia mais nenhum entorpecimento no braço que Alain tinha tocado com seu poder imundo. Aparentemente, tinha um tempo de duração.

Adentrei o meio da floresta. Assim que entrei, pude notar a diferença na pressão do ar. Conforme eu adentrava, podia observar folhas carregadas pelo vento. A alguns metros havia uma espécie de redemoinho de vento. Chegando perto da tormenta, troncos quase totalmente envergados rangiam e gemiam no torvelinho. Várias árvores estavam nuas, sua folhagem carregada para longe.

Percebi que aquele pandemônio só podia ser a luta entre dois elementais de ar. Brisa e Vendaval.

A parede de ar giratório protegia o local onde eles estavam lutando e impedia pessoas de entrarem - ou saírem.

Cerrei o punho, enterrando as unhas na carne. Agarrei a extremidade da cantante presa às minhas costas, apenas para saber se estava bem firme. E então, mergulhei de cabeça no paredão.

Foi uma idiotice. Porque no exato momento que fiz isso, sabia que não conseguiria chegar do outro lado. O ar simplesmente passava por mim, negando-se a adentrar por minhas narinas. Meus pulmões começaram a queimar. Pedaços de galho e pedras batiam contra o meu corpo com força absurda. Mas eu não podia desistir! Tinha que continuar avançando...

De repente, tudo acabou. O vento parou de girar e todos os detritos que rodopiavam saíram quicando pelo chão. Esfreguei os olhos cheios de ciscos e foquei à frente. A primeira coisa que pude notar foram as várias pessoas caídas. Eram todos os militares da vila, caídos aos pés de apenas dois oponentes.

Não podia acreditar. O medo me dominou. Se não podíamos vencer aqueles dois nem pela vantagem numérica, o que poderia?

A próxima coisa que notei foi o cadáver de Nicolas entre os corpos. Sua camisa entreaberta revelava o peito tomado por uma negritude estranha. Parecia queimado, mas não era exatamente isso. Me forcei a levantar os olhos de seu corpo e da multidão tombada.

Amanda estava de costas para mim. Oh, ainda bem que ela estava viva. Focando além dela, vi que Liam andava em sua direção, o rosto alarmado, a boca entreaberta. Como se tivesse tomado consciência de algo muito ruim. Atrás dele, Alain abaixava a palma da mão até deixá-la frouxa ao lado do corpo.

Liam levantou a dele pedindo a ajuda de Amanda, como se só distinguisse a ela. Chegou bem perto e seus passos falharam. Perdeu o equilíbrio e desabou, mas Amanda o segurou em seus braços fortes.

Meu coração ficou minúsculo e corri até eles cegamente. Não me importava que Alain fizesse algo comigo. Eu só queria alcançar Liam.

— Ah, deuses, o que aconteceu, Liam? Amanda, o que foi?

Amanda ficou surpresa em me ver, ao mesmo tempo em que desesperou-se. Estava cheia de hematomas e arranhões mas mal notei aquilo. Liam estava no mesmo estado lastimável que ela, cheio de feridas e roupas esfrangalhadas. Mas nada que justificasse aquele entorpecimento súbito.

— O que você tem, Liam? O que aconteceu? O que aconteceu?

— Eu sinto muito, Adri. Acho que não poderei cumprir com o que tínhamos combinado.

Fiquei confusa. Do que ele estava falando?

— Prometi que ficaríamos juntos e tinha até conseguido a aprovação do chefe de sua vila. Me perdoe por não poder fazer isso.

— Mas do que você está falando? Você está bem aqui, estamos juntos! Vou ficar aqui até você melhorar.

Amanda apertou meu ombro com força, para chamar minha atenção.

— Adriana. Alain usou seu toque da morte em Liam... Me desculpe, eu não pude impedir, eu...

Enquanto ela falava, a realidade parecia cada vez mais com um sonho. Eu não sabia se aquilo era real... eu não queria que fosse real. Olhei ao redor. Alain estava imóvel de uma forma respeitosa, os olhos meio baixos, aguardando. Pela primeira vez vi Serani, de pé logo atrás do homem, impassível. Vendaval estava alguns passos além, também esperando. Brisa vinha se aproximando, de um jeito meio perdido, como se não acreditasse no que estava acontecendo.

Débil nos braços de Amanda, Liam retirou do bolso seu artefato elemental. Ele estava cheio de rachaduras e pequenos raios luminosos escapavam de seu interior.

— Brisa, sinto muito que tenha sido assim, amigão. Mas nossa parceria foi incrível. Sempre levarei você junto comigo. Esteja onde eu estiver. — Disse com a voz ficando cada vez mais suave, até que o artefato se desfez em sua mão, espalhando-se em milhares de pedaços.

— Foi uma honra tê-lo como parceiro, Liam. Farewell. — Despediu-se Brisa, na língua da magia. Ergueu-se no ar e foi desvanecendo, seu corpo perdendo a forma e desaparecendo por completo.

Liam me encarou, sua boca desenhando um lindo sorriso. Um dos mais belos que eu já vira.

— Liam... Você está brincando, não é? É tudo de muito mal gosto. Você já pode parar com isso! Você estava ótimo da última vez que eu o vi.

Seu sorriso se abriu ainda mais, deixando o semblante ainda mais tranquilo. Ele tocou meu rosto com a palma da mão. Estava fria.

— Esse é o poder do meu irmão. Ou devo dizer maldição? Ele mata tudo aquilo em que toca. Ele não se importa, nunca se importou. Eu fiz tudo o que podia para não me tornar como ele. Será que consegui?

Lágrimas começaram a escorrer por meu rosto, molhando a mão dele. Soluços incontroláveis contorciam meu corpo. Não. Aquilo não estava acontecendo.

— Independente do que aconteça daqui para frente, não ceda ao ódio. Viva sua vida com fé e esperança. Você sempre foi a minha esperança. Meu dente-de-leão. Lembra?

Sim, eu me lembrava. Só não sabia mais como ser aquele dente-de-leão. Algum sentimento pernicioso crescia dentro de mim naquele momento. As palavras de Liam não me alcançavam mais. Eu já tinha perdido papai. Por que Liam também?

O sentimento de irrealidade cresceu, assim como aquela massa perversa dentro de mim. Eu olhava para Liam e não conseguia lhe devolver o sorriso.

— Por favor, dente-de-leão... Não se perca... Posso sentir o ódio dentro de você... Não ceda. N...

A mão dele escorregou do meu rosto. Foi deslizando lentamente até aconchegar-se inerte na grama.

A sensação de irrealidade nunca passou. O mundo nunca mais foi o mesmo para mim.

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É pessoal... =/ 
Aconteceu o que vcs previram.... Vou até embora antes que resolvam me matar...

Dente de Leão -- Uma breve história anterior a Perna de MagiaWo Geschichten leben. Entdecke jetzt