03 - Árvores Inocentes

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Ainda restavam 10 horas para a partida. Peguei a cantora e fui para a parte de trás da casa para treinar um pouco. Havia um terreno baldio ali, onde montei um pequeno campo de treinamento. Havia espantalhos de feno e ferro, trincheiras, alvos e... melancias. É, melancias. Eu sempre deixava umas ali para cortar e levar para o meu pai. Também havia um toco grosso e apodrecido de um antigo carvalho ainda enraizado no chão. Ninguém nunca tinha conseguido tirar aquilo da terra.

Estava vestindo uma roupa leve, própria para exercícios. Me concentrei por alguns minutos empunhando a espada à minha frente com a mão direita, os dedos da mão esquerda encostados na lâmina. A cantante era uma espada sem adornos, apenas uma grande chapa de metal de 90 centímetros. Era tudo o que eu precisava para me conectar com a magia do meu Coração.

A energia do meu Coração de Magia, é claro. É onde nosso poder se concentra. Não sabemos ao certo como a magia se acumula nesse ponto, ou de onde ela vem. É uma concentração finita de poder, e justamente por isso devemos usá-la com sabedoria e uma certa parcimônia. Me ensinaram tudo isso nas aulas de manipulação de magia. Toda pessoa de Vila Arcana passa por essa matéria. Alguns, como eu, Aman e todos os militares, aplicam a magia na luta.

Manusear magia é uma coisa sublime. É como moldar uma peça em argila. Mas é como se a argila estivesse viva, e sussurrasse em seu ouvido a forma que prefere ter. Pode-se sentir a vontade da magia, sua ânsia por um propósito. Quando eu era bem pequena, não entendia isso. Queria que a magia me obedecesse, e assumisse os padrões que eu lhe impunha, como uma tirana. Queria lutar como Aman, não importavam os custos. E é claro que não funcionava. Não conseguia efetuar um golpe mágico sem machucar os pulsos ou torcer a canela. Eu ficava revoltada. A magia devia proteger meu corpo!

Foi em um dia em que eu estava com o braço esquerdo contundido, de tanto tentar empregar a magia nos membros e não conseguir. Aman apareceu em casa como quem não queria nada, com uma espada sem graça.

— Você não pode simplesmente mandar na magia e esperar que ela obedeça. — Ela disse. — Essa energia trabalha bem em conjunto. Você e ela como um time. Dê ordens e ela lhe virará as costas. É um poder temperamental. Não vai conseguir dobrá-lo à sua vontade. Tome – ela me jogou a espada, uma coisa bem feiosa – tente impregnar a magia nisso.

Agarrei o cabo desajeitadamente, enquanto a outra extremidade foi direto ao chão, fincando-se na terra. Era muito pesada. Como eu poderia manejar aquilo? Foi justamente isso que argumentei com ela.

— Da mesma forma que tenta envolver seu braço em magia, envolva a espada. — Ela me explicou, serena.

Lancei-lhe um olhar desconfiado e bufei. Mas fiz como ela solicitou. Me acalmei e respirei fundo, sentindo a energia vinda do âmago do meu Coração de Magia, crescendo a partir do meu peito, irradiando-se pelo ventre e subindo de volta pelo meu ombro direito. Por hábito, tentei direcioná-la a circundar o braço, sentindo imediatamente seu refluxo. Forcei-a de volta, percebendo sua resistência. Fiz mais esforço, tensa. Ela agora não ultrapassava o meu bíceps.

— Está fazendo errado, tonta. Envie a magia direto para a espada. — disse Aman, com um sorrisinho e olhos estreitos.

— Que ridículo. Se eu não consigo nem conduzir magia através do meu braço, por que acha que eu conseguiria com a espada?

— Tente. — Pediu, mais dentes aparecendo por baixo de seus lábios.

Eu estava bem cética, mas tentei mais uma vez. Inspirei e expirei algumas vezes, até sentir as batidas do coração diminuírem o ritmo. Fechei os olhos e visualizei o Coração de Magia, novamente se expandindo a partir da região do esterno. O poder se concentrou por alguns momentos no abdômen, depois subiu em direção à escápula, como da primeira vez. No entanto, me concentrei para que fluísse em direção à espada.

Meu braço funcionou como um condutor. A energia não teve nenhum remorso em simplesmente atravessá-lo como se fosse uma passarela ordinária. E se concentrou, feliz e sem nenhum pudor, ao longo de toda aquela gigantesca lâmina. Fiquei abismada com a facilidade do processo, coisa que transpareceu como água em minhas feições. Afinal, apenas a minha cara de espanto explicaria o soco triunfante que Aman deu no ar.

— Eu sabia! Agora erga a espada!

Observei-a incrédula, pois aquilo certamente era impossível. Ainda mais com uma mão só. E para demonstrar isso, empreguei toda a força para arrancá-la do chão.

A lâmina voou bem acima da minha cabeça, emitindo uma espécie de assobio. Tive de me deslocar como um raio do lugar onde estava, ou seria partida em duas quando ela descesse. Ela caiu com um estrondo, um trovão ensurdecedor.

— Pelos elementais...! Mas o que...

— Como eu suspeitava! Você manifesta sua magia através de objetos!

— O que...?

— Sim! Não é muito comum, mas o fato é que há pessoas que só conseguem externar sua magia através do uso de um objeto. Tá vendo aquela árvore? Teste o fio da espada nela.

Eu ainda estava tão atônita que levei alguns segundos para entender o que ela havia dito, agarrar a empunhadura e me dirigir à frente da árvore. Tudo como em um sonho. Era a primeira vez que eu conseguia utilizar minha própria magia, dar-lhe forma, fazê-la expressar-se em nosso mundo. Eu tinha 13 anos. Quando enfim compreendi as implicações do que eu tinha acabado de executar, fiquei em êxtase. Sentia o mesmo na minha própria magia, se aquilo fosse possível. Estava tão cega de arrebatamento que mal me dei conta de mim mesma elevando a lâmina apenas com o braço direito e fazendo um corte na transversal, a ponta da espada passando a quilômetros de distância do tronco. Mal registrei o som, como um chiado de pássaros, emitido pelo deslocamento da arma no ar.

Mas não importava que a espada houvesse errado. A magia que se desprendeu do corpo dela continuou avançando, célere. Penetrou a cepa da árvore como se ela nem estivesse ali. Com o impacto do meu próprio golpe e o susto de enxergar minha magia manifestada, caí de cara no chão, levada pelo peso do sabre. Enquanto isso, toda a árvore deslizava pela base, seccionada em um perfeito corte. Logo em seguida desabou, as folhas produzindo um som muito semelhante a água.

Com a boca cheia de terra, só ouvia uma das raras gargalhadas de Aman.

É claro que hoje em dia não disparo mais raios assustadores e afiados em árvores inocentes. Pelo menos não de forma intencional. O que eu quero dizer é que aprendi a controlar esse poder, e basicamente, mantenho a magia concentrada na espada. Aprendemos que golpes de energia são apenas para ocasiões de perigo extremo.

E agora está explicado o que é o toco apodrecido que ninguém conseguiu desenraizar da terra.

Com uma inspiração ruidosa pelo nariz, estiquei a cantora, mirando-a num dos espantalhos indefesos. No momento em que avancei para uma estocada, um barulho de vidro se despedaçando veio do interior de minha casa.

Meu pai gritou.

Senti meu coração se rachar com um medo irracional e corri para dentro.


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Ai, caramba! O que será que houve???

Antes de me matar, não esqueçam de deixar um votinho e um comentário! ^______^
Ó meu corações pra vcs ó <3

Dente de Leão -- Uma breve história anterior a Perna de MagiaWhere stories live. Discover now