29- Palavras São Como Espadas

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- Alain, temos que aproveitar a madrugada para interceptar seu irmão. Ele tem que deixar Vila Arcana esta manhã.

O Rubie musculoso se levantou dos finos lençóis que o separavam do chão imundo e encharcado do casebre. Já era a terceira noite que o casal se reunia no local abandonado. A chuva batia forte no teto e paredes carcomidas. Várias poças espalhavam-se ao redor deles.

Alain sentia um tesão intenso e queria comer Serani mais uma vez, mas não havia tempo. Agarrou as calças jogadas em um canto seco e vestiu-se apressadamente. Enquanto calçava os sapatos, Serani juntou-se a ele.

- Vamos acabar logo com isso. Em breve teremos mais três Corações de Magia. Logo terei poder suficiente para governar Erescalta como achar mais proveitoso. - Depois de alguns segundos, em uma pausa não intencional, como se tivesse percebido algo só depois, Alain completou - E você também, minha querida. Poderá governar esse antro de subversivos como achar melhor.

- Alain, não gosto a como você se refere a Vila Arcana. Eu também sou Arcana, lembra?

- Mas você é diferente, querida. É forte, fogosa e muito astuta. Aqueles que tem ambição e são inteligentes sempre me chamam a atenção.

Serani dobrou-se um pouco aos elogios, mas ficava chateada quando Alain insultava Arcanos gratuitamente. Achava que, com o tempo, o Rubie se tornaria mais moderado. Era o seu povo. Ela queria protegê-los, inclusive deles mesmos. Achava que só ela poderia prover uma orientação correta. No seu entendimento, o ancião líder de Vila Arcana, Cális, era um molenga. Ele permitia que as crianças ficassem à toa e escolhessem sua profissão só aos 18 anos. E Nicolas, seu parceiro, concordava com esta visão. Para ela, os jovens deveriam ser treinados desde muito cedo, para tornarem-se bons soldados e saberem como acatar ordens sem contestar. Vila Arcana deveria ser a maior cidade fortificada e militar de Novea. Só assim seriam fortes para enfrentar qualquer adversidade.

Como imortal, poderia guiá-los na direção certa para sempre. Sobreviveria a Cális e Nicolas. Protegeria seu povo.

Mas um alarme de alerta sempre soava em sua mente quando se lembrava que Alain agora tinha um Coração de Magia a mais que ela.

Tratou de sufocar esse aviso. Bobagem, afinal Alain não podia resistir ao seu corpo.

E ela não podia resistir a ele.

Mesmo que ele não gostasse de Arcanos, e daí? Que se danasse o que Alain achava, pelo menos ele trepava bem.

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Promessas vazias. Era o que eu sabia fazer de melhor. Na minha juventude, nunca tive noção do real peso das palavras. Palavras são perigosas como espadas, e com tal natureza, não devem ser empunhadas se não forem manuseadas com cuidado. Mas eu queria que as pessoas ao meu redor se sentissem bem, ainda que com discursos impensados. Hoje eu sei que não devo falar daquilo que não posso controlar. A verdade deve ser dita. Caso não se saiba a verdade, deve-se permanecer calado.

Eu prometi a Liam encontrar um lugar para nós. Mas é claro que não foi como eu esperava. Nem tivemos a chance de começar a procurar.

Até hoje eu não sei bem como aconteceu. Mas ao que parece, Alain apareceu mais uma vez em minha casa. Desta vez não só à minha procura. Mas também à procura de Liam e meu pai. E não estava sozinho.

Tudo aconteceu muito rápido. Era de madrugada, o dia mal tinha começado a clarear. A chuva ainda caía dos céus torrencialmente. Eu e Liam caminhávamos de mãos dadas e encharcados, bem próximos da saída da vila. Não havia uma alma viva em nosso caminho. Deixávamos Vila Arcana para trás, com esperança de encontrar um lugar comum para Arcanos e Rubies. Mas bem quando cruzávamos o arco que demarcava a entrada a comoção começou. Primeiro um zumbido leve. Uma espécie de som indefinido. Depois, passos apressados começaram a ecoar vindos de vários cantos. Logo, vozes em tom de alerta e gritos angustiados se juntaram à cacofonia. Foi impossível ficar indiferente. Nós dois paramos de andar e nos entreolhamos, procurando respostas um no rosto do outro. Mas é claro que não havia nada.

Foi quando levantei o olhar acima das casas, a água da chuva machucando meus olhos. Então eu vi. Meio encoberto pelo teto de outras casas e pela distância, havia um brilho que qualquer um em Vila Arcana reconhecia e temia: o cintilar do fogo. Meu coração se apertou na mesma hora pela súbita percepção.

- Liam! - gritei em pânico - O fogo tá vindo da direção da minha casa!

Nada mais precisou ser dito.

Liam segurou minha mão, voltando em disparada pelo caminho que havíamos acabado de cruzar. Ele podia ter dito para deixar para lá. Que seria muito azar ser justamente a minha casa. Que era bobagem preocupar-se assim. Mas ele não fez nada disso. Admirei sua índole sempre capaz de considerar as angústias de outras pessoas.

Então nós corremos.

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Não sei se estou preparada para falar disso. Sim, mesmo depois de todas essas centenas de anos. Mas vou tentar, pelo meu próprio bem.

O que vi quando voltei à casa ainda está queimado a ferro e sofrimento em minha mente.

Eu nunca deveria ter saído. Onde estava com a cabeça quando pensei que tinha o direito de abandonar as pessoas que amava? Eu amava Liam, é claro, mas também amava papai.

Talvez eu não tivesse força para fazer nada, mas era meu dever estar ao lado de meu pai.

Ele havia sido perseguido. Provavelmente tinha colocado fogo na casa acidentalmente ao fugir. Nunca vou saber. O fogo soara o alarme na vila, fazendo as pessoas se reunirem ao redor do incêndio. Senhor Raul jazia de barriga virada para o chão, o corpo atirado de qualquer maneira em uma posição nada confortável. Não era possível ver o seu rosto, afundado na lama. Sobre ele erguia-se Serani, em uma posição provocadora, como se desafiasse sua platéia a contestá-la. Em sua mão ensanguentada, aninhava-se um objeto brilhante. Algo oval, que emitia um fulgor delicado.

Imediatamente lembrei de Alexia. A ruptura obscena em suas costas, que indicava a falta de algo essencial em seu corpo. Eu não podia ver o peito de papai, mas tinha certeza que se assemelhava ao da finada amiga de Aman.

Não é exagero quando digo que minha visão ficou vermelha. Tudo o que eu enxergava possuía tons de escarlate, colorido pela fúria que brotava dos confins da minha alma.

Minha mão tomou vida própria, e sacou a cantante de sua bainha em um movimento fluido. Meu corpo se atirou para cima de Serani, como uma força divina.

A cantante trovejou. Não era mais um canto de pássaros, mas o rugir de um leão. Quando dei por mim, estava acima de Serani em um pulo, a lâmina da espada baixando junto comigo. Ela nem sequer teve tempo de olhar para o flagelo sobre ela.

Mas Alain teve.

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Epa. Esse é um desses capítulos em que as pessoas começam a manifestar sua vontade de me matar...


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Dente de Leão -- Uma breve história anterior a Perna de MagiaWhere stories live. Discover now