22- Visita

203 22 30
                                    

Eu não estava entendendo nada. As coisas não faziam o menor sentido.

Eu e Aman havíamos sido resgatadas por uma equipe de coletoras que chegou alguns minutos depois de minha amiga ter sido mordida pelo Avesso. Esse mesmo grupo trouxera o corpo de Alexia à Vila Arcana e haviam lhe providenciado um funeral com honras militares. Ok, isso estava claro.

Só que tinha algo que não batia nessa história. Akia me disse que tinha sido um Rubie que chamara o time de coletoras, através do auditus de Aman. Disse também que esse Rubie permaneceu conosco até a chegada das militares e que as ajudou. Ele foi trazido até nosso lar e preso por segurança, pois não podiam confirmar a história dele. Alexia estava morta, Aman gravemente ferida e eu estava fora do ar pelo choque.

- Mas me diz uma coisa, Akia... O nome desse Rubie era Liam? - Perguntei tentando soar da forma mais natural possível.

Akia pensou um pouco, coçando a cabeça.

- Sim, acho que disseram que o nome era esse. Mas não tenho certeza. Mas você não se lembra mesmo de nada?

Fiz que não com a cabeça. Não sabia nem o que tinha acontecido antes de eu chegar até Alexia e Aman. Eu já não podia afirmar mais nada. Se Liam tinha atacado as duas, por que ficara e ajudara? Estava ficando tonta de tanto pensar nisso.

Me empenhei em resolver o que era mais simples no momento.

- E a Imani? Ela está muito brava comigo?

- Está um pouco chateada sim. Talvez fosse melhor você falar com ela.

Claro. Eu era uma cabeça dura e precisava resolver os problemas nos quais me metia. Levantei do sofá com determinação, disposta a ir até a casa de Imani e me desculpar. Akia se levantou junto comigo enquanto nos dirigíamos à porta. Meu pai nos acompanhou, às nossas costas.

Quando segurei a maçaneta, meu corpo todo travou. O sangue de Aman se materializou no chão aos meus pés, vindo por debaixo da porta. Quase no mesmo instante, comecei a hiperventilar. Se eu saísse de casa, não estaria mais protegida. Eu podia morrer na primeira esquina. Nenhum lugar possuía segurança.

- Algum problema, linda?

Akia pousou a mão no meu ombro e com certeza sentiu o tremor que percorria todo meu corpo. Pisquei as pálpebras e o plasma vermelho não estava mais lá. Mas o medo sim.

- E-eu... estou com medo de sair, Akia.

Pude ver a compaixão nos olhos dele.

- Por favor, Dri, me permita. - Ele se aproximou delicadamente e me abraçou. Senti toda a confiança que seus braços esguios tentavam me passar. Senti vontade de chorar. Era bom saber que eu contava com pessoas que se preocupavam comigo e estavam lá para me apoiar. Quase o abracei de volta, mas fiquei morrendo de vergonha. Pensei também em Imani, que odiaria me ver apertando o amado dela. Sorri ao pensar nos dois juntos.

Isso fez com que meu corpo se acalmasse. Mal reparei que já estava respirando normalmente. Afastei Akia tocando seu ombro levemente como uma pluma. Sorrimos um para o outro e eu senti que com ele estaria segura.

Abri a porta e dei um passo para fora.

Quando vi Imani chegando pelo pequeno caminho que levava até a porta de nossa casa, tive taquicardia. É, nada estava dando certo para mim.

******************

Levei Imani até os fundos de casa, onde eu costumava treinar. Queria conversar com ela sozinha, sem meu pai ou Akia escutando. Foi mais fácil do que eu imaginava. Apesar de eu ter sido idiota e estúpida, Imani não estava chateada. Quero dizer, ela tinha ficado muito triste com meu comportamento, mas compreendia que eu ainda estava um pouco confusa.

Eu, por minha vez, me desmanchei em desculpas, porque achava que nada justificava ser grosseira com minha melhor amiga. Ela me garantiu que não havia problemas e que eu podia ficar tranquila.

Ó deuses. Ainda bem. Não suportaria perder outra pessoa.

Voltamos para dentro de casa e Akia nos esperava na porta da frente.

- Agora que somos todos amigos de novo, podemos ir até a casa de Amanda, não? O que acham? - Akia voltara ao seu bom humor costumeiro.

Aman morava sozinha em uma casa não muito longe da minha, mas como estava convalescente, permanecia na residência de seus pais. Também não era longe de onde eu morava, mas no sentido oposto. Renata e Antonio Maro deviam estar cuidando da filha com todo o cuidado. Eram pais zelosos pois Aman também era filha única.

Indo lado a lado com Imani e Akia, não senti medo, e nenhuma imagem assustadora assolou a minha mente. Pelo menos não até eu ver Aman. A senhora Renata nos conduziu ao quarto que sempre seria de minha amiga naquela casa. Assim que a porta se abriu, pude observá-la em sua cama, dormindo de barriga para cima. Um pequeno globo de magia brilhava dentro de sua proteção de vidro em um cômodo ao lado da cama, deixando o ambiente numa suave meia-luz. Um fino cobertor cobria-a dos pés até a altura do peito. Os cabelos curtinhos estavam bagunçados. Seus olhos permaneciam firmemente fechados e seu rosto estava um pouco fundo nas bochechas, o que indicava que estava mais magra. O braço esquerdo não estava enfaixado nem imobilizado, o que significava que tinham conseguido restaurá-lo através de magia de cura. Devem ter levado séculos para cumprir essa tarefa. Não queria nem pensar no pedaço que o Avesso tinha arrancado...

De repente, de algum recôndito de meu cérebro, a memória do sangue espalhado e gritos despertou muito aguda e cruzou meus olhos como uma lança. Além de ter taquicardia e ficar sem fôlego, comecei a chorar e suar frio. Eu não entendia o que estava acontecendo. Aman estava bem, estava se recuperando, mas aquela lembrança teimava em me ferir. Na minha confusão, Liam surgiu em minha mente. Minhas lágrimas de desespero viraram ódio. Se eu o visse na minha frente, poderia estrangulá-lo. O pior é que eu queria mesmo vê-lo. Saber que ele estava detido na cadeia da cidade só facilitou minha decisão.

Meus amigos e a senhora Renata me tiraram do quarto quando perceberam meu choro desesperado. Mas assim que me acalmei, pedi para a mãe de minha mentora ir comigo até seu leito mais uma vez, só nós duas agora. Ela concordou um pouco ressabiada, olhando primeiro para Imani e depois Akia. Acho que ela estava com medo que eu tivesse uma síncope ou um ataque histérico.

Mas tanto Imani quanto Akia deram sorrisos confiantes. Akia chegou até mesmo a fazer um jóinha com a mão. Quase dei risada.

Eu queria ver o ferimento no flanco de Aman. Tinha que forçar meu cérebro a entender que estava tudo bem. Tinha que ter coragem.

Voltamos ao quarto dela e a senhora Renata abaixou o cobertor cuidadosamente, assim como a calça de Aman. Levantou um pouco a blusa também para que eu pudesse ver toda a extensão. Eu observei.

A forma da mordida era como a de um tubarão, visto que um Avesso geralmente possuía dentes afiados como navalha. Era notável a diferença de peles. A que tinha sido feita crescer com magia de cura era mais clara e fina. Era possível verificar o tamanho do ferimento pela coloração. Nada pequeno. Parte dos órgãos provavelmente foi arrancada, o que também tiveram que refazer com magia. Nenhuma cicatriz tinha ficado. Toquei o local e percebi que a cútis era mais áspera, mas era só. Enquanto meus dedos a tocavam de leve, uma mão agarrou meu pulso.

Não consegui me controlar. Gritei. A senhora Renata também se surpreendeu. Aman estava de olhos abertos e conscientes. Sua mão parecia um garrote ao redor do meu braço. Pelo visto sua força não se fora. Estava totalmente focada no meu rosto.

- Fale com o seu moleque. Você precisa esclarecer as coisas com ele.

E assim como veio, foi. Os dedos de minha amiga perderam a força e foram escorregando aos poucos. Seus olhos se reviraram e ela os fechou. Tipo numa história de terror. Fiquei pensando se não estava imaginando coisas. Mas pela forma que a senhora Renata estava estupefata e depois correu à cabeceira da cama para tentar acordar Aman de novo, acho que se fosse uma visão, pelo menos não a tive sozinha.

"Fale com o seu moleque." Hum. Ela não podia estar falando de ninguém além de Liam, não é?

Uma grande coincidência. Minha próxima parada seria exatamente a cadeia da vila.

Dente de Leão -- Uma breve história anterior a Perna de MagiaTempat cerita menjadi hidup. Temukan sekarang