04- Lembre-se

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— Mas que porcaria!

Ouvi senhor Raul praguejar enquanto eu atravessa a casa como se as paredes não existissem, um nó apertando meu peito. Eu o vi quando cheguei à cozinha, curvado, catando com mãos trêmulas os pedaços de vidro da garrafa estilhaçada. O chão estava encharcado.

Ele ia começar a beber.

Cheio até a boca, o copo descansava sobre a mesa. O líquido amarelo parecia imaculado. Maldita bebida fermentada!

— Pai. O que é isso? — Perguntei, não querendo ouvir a resposta. Qualquer que ela fosse.

— Eu estou nervoso, Adriana. Achei que um golinho não faria mal.

— Um golinho?! Pai, você encheu um copo inteiro!

— É só um pouquinho. Nada de mais.

— É mesmo? E depois desse pouquinho vem mais um pouquinho e mais outro...

— Adriana. Veja como fala.

— Por acaso é alguma mentira? Você tinha parado com isso, pai! Não pode apelar para esse lixo toda vez que fica preocupado! Eu desisto. Não vou mais com a Aman. Vou ficar aqui com o senhor.

Meu pai me encarou com um semblante surpreso, como se nem tivesse pensado em tal possibilidade. Sua expressão mudou rapidamente para vergonha e seus olhos seguiram para o chão, como se fossem perfurá-lo. Mordeu os lábios com força.

— Desculpe, Adri. Estou sendo egoísta. Não tenho esse direito. Olha, vou jogar isso fora, está bem?

Com efeito, ele segurou o copo entre os dedos em forma de garra e atirou seu conteúdo pela janela, direto nas flores do jardim. Depois largou-o com aversão, como se fosse um animal gosmento.

Não fiquei convencida. Procurei em todos os seus esconderijos possíveis, pela casa toda, mas não encontrei nenhuma outra garrafa.

— Pode ficar tranquila. Era filha única.

— Pai, por favor, por favor, jura que não vai fazer nenhuma besteira? Tudo vai ficar bem, você vai ver! É uma promessa, lembra?

— Sim. Juro. Me desculpa, filha.

Uma de suas mãos ásperas segurou a minha, firme. A outra ele usou para esconder os olhos. Mas a sua boca ainda fazia aquele movimento de mascar, o que significava que ele estava sedento por um gole. Fiquei arrasada. Como eu poderia ir e deixá-lo naquela situação? Embora a minha vontade de me tornar uma coletora fosse esmagadora, aquilo não podia vir antes da saúde do meu pai.

Ele baixou a mão e pude ver seus olhos marejados.

— Adri. Conheço essa cara. Eu sei o que está pensando. Perdoe seu velho pai, acho que estou mesmo ficando velho. — Ele suspirou. — Lembra o que eu disse sobre as árvores e suas sementes? É contra as leis da natureza que a semente morra antes daquela que a gerou. Mas também é impossível que a árvore impeça o desenvolvimento da semente, pois esse é seu caminho natural, a razão de sua existência. — ele fungou e expirou o ar com força — muitas vezes, a árvore tem até mesmo que se conformar que suas filhas cresçam longe de sua proteção. Mas elas sempre vão se lembrar uma da outra com muito carinho, ambas desejando o melhor. Eu e você...

Eu o abracei. Não queria que ele visse minhas lágrimas.

— Lembre-se de mim, Adri.

Tarde demais. Comecei a chorar como um bebê, soluçando em seu ombro.

— Lembre-se de mim, pai.

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E aí, o que estão achando? Me digam em um comentário! E se gostarem, não esqueçam aquele votinho maroto, hein? =P

Dente de Leão -- Uma breve história anterior a Perna de MagiaWaar verhalen tot leven komen. Ontdek het nu