Diário de Bordo dos Pierrôs (Justiça, Honra e Equilíbrio)

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Quando se passa muito tempo submerso e sem contato direto com a luz do dia, é difícil manter uma rotina regrada, mas, mesmo assim, pouco antes das luzes noturnas serem trocadas pelas diurnas, os tripulantes do Diabo Negro já estavam de pé e a postos (ou pelo menos a maioria deles). Sem dúvida alguma era um trabalho que exigia muito, esse; diferente de um navio pirata tradicional, que poderia entrar a deriva durante a noite para seus passageiros descansarem — salvo um ou outro coitado responsável pela vigia —, dentro de um submarino os serviços nunca acabam, e por isso ninguém tem a permissão de dormir demais; em vez disso, otimizam seu tempo com rodízios de tarefas intercalados as horas de sono, assim permitindo o mínimo de qualidade de vida àqueles que, bem no fundo, só tinham uma grandessíssima de uma ilusão. "Saúde" não era um direito assegurado aos Pierrôs — e é claro que Pieri não poderia se importar menos com isso. Enquanto capitã, era seu dever zelar por seus marujos, mas quem iria realmente fiscalizar? A resposta era clara como água: ninguém. Isto posto, reservava a si a tarefa de apenas navegar, utilizando todo o tempo disponível para traçar as infinitas léguas marítimas e, sobretudo, organizar seus planos de dominação mundial ao passo que seus subordinados faziam todo o resto do trabalho.

Dadas as circunstâncias, sequer dá para dizer que se trancar na sala de comando sem água ou alimentos por três dias inteiros foi uma situação surpreendente: na realidade, todos tratavam as peculiaridades da capitã com a maior naturalidade, e de vez em quando até agradeciam aos céus quando ela lhes permitia uma folga de seus gritos. Se desejava trancar-se no topo de uma torre ou em uma gaiola cheia de crocodilos, seu desejo é uma ordem, ninguém iria se opor: tinham amor aos ouvidos e aos dedos, e acima disso, sabiam que Pieri nunca mudava de ideia — Kristian quem diga; afinal, estava agora mesmo ressonando sobre a mesa de jantar sem um dos braços, apenas por usar das palavras erradas para perguntar se ela iria ou não jantar (não se questiona um maluco armado, é uma das regras não escritas da vida, não só daquela tripulação).

Se apenas velejar poderia comprometer as noções de tempo e espaço, ao viajar em um submarino não era incomum que perdessem completamente os sentidos, ao ponto de nem ter parecido tanto tempo assim que sua capitã havia sumido nos confins daquele monstro de metal. Foi apenas quando, durante o alvorecer do quarto dia sem ela, surgiu completamente virada do avesso na sala de refeições que notaram quanto tempo havia se passado realmente. Ela estava horrível — em todos os sentidos possíveis da palavra. As presilhas presas quase na ponta do cabelo, a franja completamente arrepiada e sua pele, seca pela falta d'água, estava empalidecida em um tom quase cadavérico, destacando ainda mais as gigantescas bolsas pretas debaixo dos olhos e as bochechas caídas. Era bastante miserável de se ver, além de nada coerente com a figura imponente que inspirava um bando pirata, mas isso nem de longe a tornava menos assustadora, principalmente pelo fato de ter pendurado ao seu ombro o braço direito de seu imediato, arrancado e pendendo de um lado para o outro.

Após três dias sem qualquer alimento, líquidos e sem trocar palavras com outros seres humanos, não era estranho que estivesse um tanto animalesca, mas também não esperavam que seria tanto assim: Pieri não dirigiu qualquer palavra a eles, apenas foi diretamente a geladeira, pegando uma garrafa de água e ingerindo todo o líquido de uma única vez, até deixando que um pouco escorresse pelo canto da boca, tamanho era o desespero.

Finalmente, depois daquela ceninha — um verdadeiro show no picadeiro, como a tradição da família exigia —, ela se virou aos confrades, olhando-os com aqueles mesmos olhos transtornados de sempre e com um largo sorriso nos lábios.

— Vamos emergir — ela disse, em tom ríspido e bastante seco, talvez por causa da garganta desidratada. Seus dentes à mostra pareciam maiores do que qualquer Monstro dos Mares e os olhos, tão arregalados, pareciam querer saltar para fora, um para cada lado, como duas molas tensionadas.

Prisão de GatoWhere stories live. Discover now