Periódico do Komainu, Cais (Casa de Banho)

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"(...) Talvez não sejas mistério,

todo o mundo sabe de ti e pertences

ao habitante menos misterioso,

talvez todos o acreditem,

todos se acreditem donos,

proprietários, tios

de gatos, companheiros,

colegas,

discípulos ou amigos

do seu gato.

Eu não.

Eu não subscrevo.

Eu não conheço ao gato. (...)"

— Ode ao Gato, de Pablo Neruda

Por muito tempo Morgan fingira ter nascido adulto, ao passo que só agora percebia o quanto não havia amadurecido de seus onze anos para cá. Sua mãe, quem mais prezava, era a culpada por seu mau crescimento, visto que nunca estivera presente o suficiente para criá-lo como um filho e, nos poucos momentos em que assumia suas obrigações como mãe, apenas mimava-o com livros e presentes que adquiriu em suas viagens, distraindo-o com contos e histórias fantásticas que, é claro, ele fingia não se importar. Era um adulto, afinal — ela dizia que era o "homenzinho da casa" e, por pouco que fosse, parecia o bastante para que continuasse com seu bom trabalho. Se ela desejava um adulto, ele seria o melhor que poderia ser.

Mas não foi. Tampouco chegou próximo de tornar-se um homem, muito pelo contrário, a distância e a solidão não permitiram que atingisse a maturidade maior do que a de um rato. Pobre, pobre rato. Morgan cresceu sozinho, mas nunca roubou para sobreviver como fizeram seus confrades e portanto nunca reconheceu a si mesmo como o lixo que era: vivia nas ruas, buscando nos móveis velhos da casa e tralhas jogadas fora um pedaço de história que o tornasse mais próximo dos humanos, ao mesmo tempo que levantou o nariz, fingindo importar-se com a posição social que fora lhe cedida; com os privilégios de um nobre, tentou encontrar um pouco de sentido em sua própria miséria e acreditou que a medicina seria sua salvação. Agarrou-se aos livros e as teorias como sua nova fonte de sobrevivência, não demorando mais de um ano para que toda a extensa biblioteca de sua mãe já estivesse sido estudada por completo, entretanto, como se a vida já não tivesse tirado-lhe demais, Morgan descobriu com a prática que não era um bom médico. Ainda que obtivesse conhecimento teórico e soubesse o que estava fazendo, não havia nenhum paciente que o aceitasse como seu doutor e, aos poucos que aceitavam seus cuidados, restava outro problema: a falta de prática o colocava em uma posição delicada, tanto que apenas desistiu de tentar em certo momento e procurou nos cadáveres dos cemitérios o conhecimento que lhe faltava.

Não funcionou. O olho que futuramente arrancaria de Bertruska era a prova viva de que havia falhado em suas técnicas, pois estava certo de que sua mãe seria capaz de salvá-la, de alguma forma. Teve sorte em não matá-la — durante todo o procedimento e principalmente nas longas horas que tentou em vão lidar com a febre que não dava trégua — e um médico nunca poderia contar com a sorte, tampouco estar constantemente dependendo do acaso, como ele o fazia. E ele sabia disso porque Yun e Franz sabiam, não porque constatara por si próprio. A capacidade deles o fizeram entender que não estavam no mesmo nível e, destarte, não poderia mais ser o que era sem colocar em risco a vida daqueles que amava.

"Amor". De todos os sentimentos adultos que conhecia, esse era o único que nunca esteve em seu conhecimento, isto porque nunca lhe pareceu certo dedicar parte de sua vida para compreender algo tão irracional e inútil. Quer dizer, decerto leu o amor dos livros, mas Morgan nunca gostou de ficções, porque sentimentos retratados em romances lhe eram abstratos e impalpáveis demais, de maneira que preferia acreditar que nunca os conheceu, até, sem querer, esbarrar com Merin, que era a antítese de tudo, tudo que já havia estudado.

Prisão de GatoWhere stories live. Discover now