East Blue, alto-mar (Marine 153rd)

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 A noite anterior fora terrível, protagonizada pela sinfonia plangente e irreprimível de uma capitã desesperada. E quem dera que fosse pelo medo de serem descobertos como os ladrões de um barco da Marinha!, pensava Flint, pois dessa forma ao menos poderia resolver o problema. No entanto, se tratava de uma situação fora do seu alcance. Uma emergência: precisavam, urgentemente, de um médico.

O caos se iniciou pouco depois da meia-noite.

Estavam os três alimentados e confortáveis; Belka e Flint ainda na mesa de jantar, bebendo para afogar o estresse daquele dia que não tinha fim, e Poyo — a contragosto — já recolhida nos aposentos do barco. De repente, a dupla mais velha daquele bando frustrado ouviu um grito medonho vindo do deque inferior. Saíram com uma rapidez inacreditável; o cozinheiro na frente, temendo o pior de olhos arregalados, e a imediata meio trôpega, mas ainda assim com considerável preocupação. Dentro do convés, deram de cara com a menininha torcida feito cobra, com metade do corpo na cama ainda coberto e o torço virado para o chão, regurgitando tudo que tinha no estômago. Os bracinhos seguravam na beira da madeira, tentando não se desequilibrar e cair de cara no próprio vômito, mas a pobrezinha não tinha mãos o bastante para não se sujar, e era olhar para baixo ou se afogar. Sua pele bronzeada estava pálida. Talvez até verde, se olhassem bem. Em volta de si, tanto o chão quanto o lençol estavam ensopados pela pasta mal-digerida do jantar, ainda cheirando a rabanete, mas com pitadas de suco-gástrico e suor. Uma imundice.

— Valha-me Deus! — exclamou Belka, imediatamente tapando seu focinho. Esbarrou em si mesma enquanto tentava recuar, parte pelo enjoo, e outra pela quantidade exacerbada de álcool no corpinho de menos de um metro de altura. Apoiou-se tonta na parede, e mesmo que estivesse olhando a cena de longe e através de um só olho, não pôde evitar de sentir certo desgosto: odiava bagunça e, acima de tudo, não suportava odores como aquele.

Por outro lado, Flint não disse uma palavra e não levou sequer dois segundos para grudar na menininha. Levantou seu corpo febril pelas axilas, pondo-a de quatro sobre a cama, virada para a fora — ao menos dessa forma não iria engasgar. Não era pesada, mas por estar tão mole fora difícil de firmar. Apressado, sentou-se ao seu lado sem se preocupar em se sujar, segurando os cabelos atrás da cabeça e inclinando-a para baixo, pois nem isso ela parecia capaz de fazer por conta. 

Era de dar pena, sua situação. Tremia os joelhos e braços de frio, com dificuldade para se equilibrar, e entre as golfadas delirava com um ou outro gemido sofrido. Não parecia ter sobrado muito dentro de si, todavia, o pouco que vinha, saía queimando a garganta. Poyo nunca havia passado por algo assim antes: sempre comeu de tudo, mas em pequenas quantidades, e o que entrava já era gasto em seguida porque corria demais. Eventuais disenterias ocorriam, é claro; a maioria por decorrência da ingestão de água contaminada e outras por comer alimentos que passaram do ponto, mas isso nunca foi o bastante para derrubá-la (era muito forte e se orgulhava disso). 

Contudo, essa única vez fora o bastante para perder toda a arrogância de se achar melhor que as doenças. Nada havia lhe feito tão mal. A cada puxada de ar, sentia um tijolo latejando dentro de seu estômago, por mais que tivesse certeza absoluta que respirar não tinha muito a ver com dor de barriga. Não conseguia conceber um porquê para aquela maldição cair justamente em suas costas. Porque, para ela, era disso que se tratava: uma maldição. Afinal, estava bem agora pouco! Tinha um bom barco, tripulantes e, claro, havia desfrutado da melhor refeição de toda sua vida! Decerto era o castigo por ter sido tão feliz num dia só. Só podia ser isso.

— Você não vem me ajudar? — perguntou Flint, sem largar os cabelos da menina, mas consternado: só agora percebia que a cada jorro, Belka ia um passo para trás, e no momento já estava escondida pela porta, só com metade do rosto visível. Se não tivesse a flagrado naquele instante, teria sido tarde demais.

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