Grand Line, Cidade de Pulveres (Pulvereta)

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Como todo bom pirata (ou manguaça de vida dura), Flint decidiu que a melhor forma de apagar seu sofrimento era com a cachaça — dessa forma não esqueceria somente da imensurável dor do corpo; o álcool também serviria para livrar-lhe da raiva que sentia da gata por tê-lo feito escalar uma montanha mesmo sabendo que era um fumante assíduo. Destarte, se conhecendo como se conhecia (ora, dos vinte e seis anos que tinha, pelo menos catorze deles passou bebendo!), foi realmente muito estranho acordar perfeitamente coberto em sua cama, sem nem uma garrafa de rum vazia ou um balde cheio de vômito por perto. Quer dizer, para começo de conversa, desde quando voltava para cama quando bêbado? O habitual era cair (morto) em qualquer lugar, porque sempre que bebia, tinha certeza de que não veria o amanhã, e portanto de pouco importava onde iria acordar.

Com algum esforço dobrou os dedos dos pés e mãos, sentindo as ataduras — que enrolaram dos joelhos aos pés e dos ombros as mãos — dificultarem seus movimentos. Não era surpresa os ferimentos estarem tratados, certamente o médico havia o feito, entretanto quando isso ocorreu e o porquê de não estar consciente durante o ato eram dúvidas que penduravam na mente do cozinheiro, mesmo que de praxe preferisse deixar aquele assunto quieto. Pois bem, não era um investigador e de pouco importava buscar o que realmente acontecera durante as horas que passara desacordado; desde que lhe oferecesse um fogão decente, bons ingredientes e um cigarro, poderia ignorar a curiosidade e ficar quieto. Acima de tudo, Flint tinha a virtude de aturar qualquer surpresa que a vida resolvesse lhe presentear. Aliás, como precisava fumar!

Levantou-se da cama da mesma forma que faria um idoso de oitenta anos; a coluna reclamando como se nunca tivesse visto uma cama em toda sua vida — talvez fosse verdade: não tinha certeza da última vez que dormiu em uma cama decente, se é que havia dormido em uma até então — e as pernas hesitando em cumprir seus comandos, provavelmente por causa da falta de sangue. Quando se pôs de pé, sentiu os olhos embaçarem e por pouco os joelhos não cederam; todo o líquido de seu corpo desceu de uma vez só e a tontura foi tanta que não teve outra opção senão apoiar-se na escada do beliche para não ir direto ao chão.

A partir de então, iniciava-se outro desafio: chegar até a porta do quarto sem perder o equilíbrio ou vomitar no caminho (até porque seria sua obrigação limpar depois). Foi andando desnorteado, as mãos tateando a parede para saber as direções e o embalo do mar o convidando para se jogar no chão. Fechou os olhos momentaneamente — esperando que isto lhe trouxesse de volta suas faculdades mentais, mas de nada adiantou. "Eu sou um fodido", pensou, contorcendo seu rosto em uma careta e automaticamente sentindo uma dor excruciante em sua face: lembrou-se no mesmo segundo do que ocorrera, a maldita havia lhe chutado na cara. Um choque de fúria passou por todo corpo, principalmente porque, agora tão perto da porta, podia ouvir os roncos tranquilos de sua algoz, dormindo no quarto das mulheres como se nada tivesse acontecido. Um sorriso cruel brotou em seus lábios ressecados; sem nem fazer esforço, uma ideia (brilhante) lhe veio à mente.

Não hesitaria mais; não com um plano traçado. A esganaria e, como recompensa, dois cigarros e um copo de água. Era mais do que o merecido — tanto para ele, quanto para ela. Isto é, se realmente quisesse se vingar de forma justa, não lhe daria uma morte tranquila dessas... Mas não queria chamar atenção (e muito menos tinha condições de lutar antes dos cigarros). Finalmente, Flint se desprendeu da parede e a passos largos alcançou a porta, contudo ao esticar a mão direita em direção à maçaneta sentiu seus planos serem destruídos diante de seus olhos. O pulso bambo deixava as mãos pendidas para baixo, tremendo incessantemente e quase sem forças para virar o trinco. E, vamos, se não conseguia nem fazer isso, quem ele queria enganar? Estava incapacitado. O tabagismo lhe cobrava as horas dormidas e qualquer outra necessidade tinha de ser deixada de lado: a prioridade era resolver aquele problema.

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