East Blue, localização desconhecida (Pulvereta)

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Ivan Koch não era um homem quando começou a viver por conta própria. Menos que isso, na verdade. Não era homem, nem menino; nos anos que viveu sob custódia de sua mãe, fazia parte da família tanto quanto a mesa de centro da sala: apenas mais um utensílio à serviço, do tipo mais submisso possível, aguentando os pés craquentos em suas costas porque não tinha boca para reclamar. Viveu por muito tempo nessa posição. Viu e ouviu mais do que gostaria também. Desde cedo, sua mãe dizia que não teria futuro se não a ouvisse e se alistasse à marinha aos dezesseis — mas para isso ele precisava aprender a cumprir ordens, já que ninguém aceitaria um marinheiro frouxo em seu batalhão. Quando se deu por conta, além da aparência maltratada (cheio de arranhões pelo corpo e juntas mais grossas que o comum, oriundas das mais diversas fraturas), ele tinha menos vontade própria que o capacho da entrada, e ser pisoteado já nem era o pior que poderia passar: ao menos não quando se tinha que limpar o próprio sangue espirrado nas paredes, futilmente eliminando as provas do que todos da cidade já sabiam que acontecia naquela casa.

Ninguém nunca veio para ajudá-lo. Fora dali, cumprimentavam sua mãe como se não vissem os braços quebrados ou vergões pela pele; como se não soubessem o monstro que ela era. E ao passo que eram omissos a toda e qualquer violência que "poderia" — uma possibilidade, não certeza — acontecer naquela casa, Ivan também crescia sem se queixar, limpando os vidros e panelas; comprando os fósforos e cauterizando os próprios machucados.

Não reclamava ou sequer falava. Sempre foi assim.

E, naquele dia, também foi.

Era verão — e ele sabia disso porque o sol estava forte mesmo que já passasse das sete horas da noite. Depois de quase uma hora esfregando sua camisa até que as pontas de suas unhas se quebrassem e forçar o sabão em barra no tanque até que ele fizesse o trabalho de disfarçar aquele cheiro nauseante que saía do líquido das manchas, Ivan finalmente conseguia ver o branco do tecido de volta, por mais que ainda tivesse uma coloração esquisita, tal qual a água na bacia, que agora parecia turva, num tom de vermelho-ferrugem, e com alguns coágulos flutuando para o provocar. Parecia a porra de um açougueiro depois de abater um animal e escoar seu sangue. Nunca se importou de andar maltrapilho, sua vaidade era tão ínfima que sequer notaria os olhares atravessados, contudo não poderia ser visto usando uma roupa manchada como aquela, já que a mãe não o permitiria desonrar a família daquela forma. Eram pobres? Sim, mas ao menos deveriam disfarçar sua miséria parecendo sempre limpos.

Ao fim da lavagem, depois de estender a camisa na cerca de arame dos fundos, tomando o cuidado de retirar os sapatos antes de entrar para que a terra e mato seco não adentrassem a cozinha recém-limpada, deu-se conta de que todas as atividades haviam sido realizadas e, assim sendo, estava livre pelo resto do dia. Quer dizer, isso se ela, a Senhora, não decidisse sujar o chão propositalmente para fazê-lo limpar com a língua, como era de seu feitio quando sentia que havia trabalhado de menos — e, como sempre, a mera alusão a esse pensamento foi o bastante para apertar as unhas nas palmas ásperas, sentindo o pulso tremer de maneira involuntária e um gosto amargo na garganta (bile de ansiedade).

Ivan soube que precisava fumar antes mesmo de sentir vontade de chorar. Apesar da pouca idade, aprendeu a ler os sinais de seu próprio corpo e tinha noção de quando ele estava gritando por qualquer substância que pudesse lhe aquietar os nervos — normalmente quando os joelhos vacilavam e as mãos não paravam de tremer. Porém, sabendo que apanharia até que seus dedos caíssem caso Ela o pegasse fumando, decidiu que sairia de casa para buscar alento nos becos sórdidos ou então no fundo de uma garrafa de cachaça.

As fendas da madeira do andar de cima eram quase auto falantes para sua paranoia, repercutindo cada movimento da mãe na cama e cada ronco gutural; preenchendo não só os cômodos, mas também sua mente adoecida com absoluta culpa, como se ouvisse neles uma evidente reprovação por querer fugir, nem que fosse apenas por um momento. Não importava o quão suínos soassem — aquele gorgolejo podre, que quase tinha cheiro de comida mal digerida a um pavimento de distância, para ele soava como se estivesse ao seu lado, seguindo cada passo e distorcendo-se em frases e grunhidos de ódio. A voz estridente (embora empostada, a fim de parecer mais potente e intimidadora) jamais deixava seus pensamentos e o pânico de ser acompanhado por sua progenitora criava gotículas de suor em suas mãos calejadas, além da habitual queimação em seu estômago.

Prisão de GatoTempat cerita menjadi hidup. Temukan sekarang