Grand Line, alto-mar (Especial)

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Quase dois dias depois dos Pierrôs partirem da Ilha dos Macacos com o barco do bando aliado guinchado, a algumas muitas milhas de distância dali, em outra rota da Grand Line, estava Bertruska, ainda perturbada pelos ocorridos da noite em que apagaram a antiga tripulação de Flint. Contra sua própria vontade — e também contra seus maiores preceitos —, rolava na cama sem conseguir repousar, ruminando sobre suas decisões de vida e demais anseios. Já era noite e os gatos ou dormiam, ou vigiavam, mas nem de longe estavam tão despertos quanto ela, que não conseguia sequer piscar sem ter milhares de flashes pulando em sua visão: memórias vagas de tempos melhores e afagos quentes de sua mais tenra infância. Normalmente, seu passado era algo que não permitia-se recordar. Não porque sofreu demais, muito pelo contrário: lembrar-se de tanta felicidade apenas trazia à tona a imensidão de sua miséria e como não era de seu feitio lastimar sobre o que se fora, era melhor deixar para trás.

Os momentos de alegria não foram poucos e se lembrar de como tudo evaporou de suas mãos era dolorido demais para ela; uma prova concreta de que era fraca e que, claro, nunca poderia voltar para consertar. O tempo não dependia de sua vontade. É certo que, para a maioria das pessoas, viver em meio a iscas e peixes está bem longe do que é considerado uma vida "ideal" — uma verdadeira prova de que os ricos venceram e os pobres deixaram-se ser dominados, tomando para si os piores trabalhos por falta de opção; contudo, para a pequena Bertruska, uma menina simples em seu íntimo, era impossível enxergar o lado ruim da moeda. Amava o que a envolvia incondicionalmente, e mesmo hoje, depois de adquirir outros parâmetros para fazer uma comparação mais justa, ainda assim consideraria sua vida de lá — longe e distante — estonteantemente perfeita; um objetivo a se reconquistar. 

A época em que passou sobre as ondas junto dos pais, recebendo todo o amor que eles poderiam lhe providenciar, era tudo o que poderia querer. As temporadas iam e vinham como os ventos na enseada. Seu credo era simples: junto deles, era feliz. Saíam cedo para velejar em uma embarcação pequena, e só retornavam quando a rede estava cheia, pois nas cidades que fedem a peixe, a concorrência é alta, e não voltar com muito era sinônimo de fracasso. Certa vez, Bertruska perguntou a seus pais o porquê de se matarem tanto para ir e voltar sempre com a rede cheia, se poderiam apenas ir além da costa e buscar peixes de melhor qualidade, mas a resposta veio nua e crua pela voz de seu pai: "Filha, somos especialistas em peixes pequenos", ele disse; e era verdade. Sempre soube que temiam o desconhecido, mas acima disso, eram fracos mesmo; efêmeros salmões, que vão e voltam só no outono, nunca indo longe demais pois sabem bem que devem voltar para o lugar de onde vieram, a fim de prolongar a existência de sua espécie.

Sobre os desejos da carne, seu pai, um homem comedido, abandonou sem pestanejar a vida boêmia para cuidar de sua família. Não amou a esposa a princípio, assim como ela não o amou; eram jovens, daqueles imprudentes que se deitam com itinerantes e esquecem de pesar as consequências, mas diferente do que era esperado dos homens daquela cidade, ele tinha seus princípios — e era isso que Bertruska admirava nele. Aprendeu sobre o amor familiar cedo e, afinal, descobriu que isso bastava. Daí então, a pescaria foi uma questão de tempo. Em consideração a esposa e filha, adotou o comércio local e, quando perceberam, os dias e noites tomaram o mesmo rumo; sob o sol escaldante, trabalharam sem hora para voltar e economizaram cada centavo das vendas, na vã esperança de alcançar uma velhice tranquila, cheia de netos em seu entorno e com uma cama quente para se deitar.

No entanto, por mais que a idade tenha chegado, a desejada aposentadoria nunca veio para eles, dado que, com o grande aumento de embarcações piratas e todo o East Blue lentamente se transformando em um verdadeiro campo de guerra, a região, antes tão amigável, se tornava perigosa pela primeira vez. Mesmo que muito nova na época, a ex-marinheira se lembrava bem dos boatos de escassez de espécies de peixes que começaram a rondar as mentes dos pescadores, e também do sentimento de incerteza que cada vez mais tornou a concorrência demasiada agressiva: de súbito, aquele que outrora ajudou os mais fracos, agora tomava sua pesca e barco porque já não havia mais espaço no mercado para os dois. Vencia quem tinha mais e, a fim de evitar tais animosidades, restou para os Kalahan (o nome que estampava a lateral de seu barco) evoluir.

Prisão de GatoWhere stories live. Discover now