Grand-Line, Carniça (Fruta do Diabo)

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Bem antes de ser gato, Belka, em seus tempos áureos, precisava apenas estalar os dedos para que todos seus desejos fossem realizados e, se por um acaso alguém tentasse lhe negar um novo vestido, ou quiçá um novo par de joias para combinar com seus sapatos chiques, não havia problema, afinal tinha total liberdade para demitir qualquer um que lhe maltratasse dentro daquela casa. 

Aqueles sim eram bons tempos. Como a única da grande e influente família Bosman que mantinha-se frequentemente na cidade (uma vez que os demais adultos, com exceção de seus irmãos, costumavam passar a maior parte do tempo viajando de ilha em ilha em reuniões de negócios), a grande mansão do reino de Náutica era seu palácio particular, sempre bem frequentado pela grande burguesia e com os melhores jardins de toda Cowrie. É claro que tinha suas obrigações como nobre, ser parte da elite não era fácil como todos pensam — as aulas de etiqueta nos horários inadequados sempre a incomodavam, bem como o assédio dos pobres da cidade baixa, que sempre a tiravam do sério — não obstante, sabendo que deveria se distinguir da ralé, a garota não poderia sentir-se mais satisfeita sobre a própria vida e, destarte, usava cada olhar invejoso que recebia das meninas de sua idade como armadura, da mesma forma que fazia os elogios sinceros vindo dos homens que a cobiçavam, sua espada.

As tardes eram longas e as noites de verão quase não tinham estrelas, dado que as luzes da cidade estavam sempre acesas e dispostas a recebê-la. Belka era uma humana como qualquer outra, tirando o fato de que era melhor que cada um deles e, quando dizia isso, tinha quinze pessoas ao seu redor para atestar seu caso. Tudo sempre era perfeito, ou melhor dizendo, ao menos para ela, que vivia no topo de sua pirâmide. Contudo, para aqueles que estavam sob seus pés durante sua passagem, as opiniões não poderiam ser mais diferentes: enquanto, por um lado, ela afirmaria descaradamente que as faces enrugadas e olhos rolando não passavam da mais pura inveja daqueles que a rodeavam, seus empregados estavam planejando uma verdadeira tramoia para cima de si, fazendo de tudo para transformar sua vida num verdadeiro inferno.

Fosse trocando suas roupas de lugar ou a humilhando publicamente com suas más educações, os subordinados não mediam esforços para destruir sua reputação e não era preciso de muito para notar o quão péssimo era o tratamento que eles lhe davam: estavam cegos pela ambição de ascender em suas vidas, por isso descontavam suas frustrações proletárias sobre a pobre garotinha abençoada por Deus, que nada fazia para pessoalmente os ofender, mas ao mesmo tempo continuava aguentando sozinha suas torturas. Só que ela tinha a impressão que ninguém se importava realmente com seu sofrimento. Seus pais eram ocupados demais para ela e os pretendentes não esperavam ouvi-la reclamar. Entre todos os súditos, restavam os irmãos, mas eles também não pareciam muito interessados nos males que poderiam ocorrer consigo: decerto era uma falta de classe sair falando mal de quem a servia diariamente, mas que culpa ela tinha em denunciá-los, se ninguém fazia o que queria direito e, por conta disso, ela corria risco de vida?

No fim das contas, diferente dos lençóis trocados e vestidos rasgados, que eram irritantes, mas não eram verdadeiros atentados, bastou um dia de descuido para que tudo que prezava ruísse diante de seus olhos e, tão rápido quanto começou, seu império todo foi a baixo, exatamente como nos contos fantásticos, mas, diferente de Eva, a fruta que era o próprio Diabo.

Belka não desconfiou dos risos parvos que a seguiam. Certa feita, quando a refeição chegou aos seus aposentos, ela comeu sem pensar, porque jamais imaginaria que a estupidez dos pobres seria capaz de vencer a cultura e ciência que por anos lhe fora ensinada. Foi ingênua, sim, mas porque naquela época não existia a maldade. Isto é, aqueles idiotas a odiavam porque era rica e linda e só por isso, queriam vê-la morta, estirada no quintal! Como é que poderia ver aquilo se aproximar? Talvez porque fosse desde o princípio destinada ao martírio, no dia em que seu assassinato estava programado, não houve sequer uma pessoa pela mansão que pudesse ajudá-la. Estavam todos longe, isentos da culpa de não a salvar. No dia seguinte, quando seus pais voltaram para não encontrar nada além do vestido ensanguentado, nenhum empregado foi culpado; todos, todos riram de si enquanto os pais choravam baixinho e culpavam a própria ausência pelo desastre. Não havia vítimas, exceto ela, que, naquele exato momento, vagava moribunda pelas ruelas do que um dia fora seu próprio palácio. O caixão vazio que fora arreado à sua frente era seu, mas ela não foi convidada ao próprio funeral. Em meio aos parentes trêmulos e burgueses vestidos de preto, prestando condolências aos enlutados, Belka permaneceu de patas juntas atrás de uma moita até que não aguentou mais ver os reflexos de si mesma nas silhuetas das senhoritas acinturadas e, quando percebeu, já estava andando de volta, para longe daquele lugar e em direção a qualquer outro que pudesse a tornar mais forte.

Prisão de GatoWhere stories live. Discover now