Capítulo I - Ligados por Sangue / Parte 1: Edgar Visco

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Hoje sei que a felicidade apenas pode ser plenamente compreendida uma vez que já se foi; nem ao menos reparei meu sorriso refletido no retrovisor enquanto seguia para casa.

Meados do outono de 2012, o costumeiro frio da época começava a envolver os ventos que sopravam sobre Circodema e muitos ainda acreditavam que o mundo sucumbiria ao final daquele tão especial ano. Vários dos mais antigos moradores da cidade se uniam para atirar rosas às margens do rio Calios como um pedido de perdão pelos seus pecados e misericórdia para com suas almas - os jornais batizaram o evento de "o passeio das rosas".

Por cima do largo rio erguia-se a gigantesca ponte Uly, que, ao longo dos anos, se tornou mais que a ligação entre Circodema e Presinde - cuja fronteira era delimitada pelo próprio rio -, consolidando-se o mais conhecido ponto turístico da cidade. Lembro-me de ter ouvido que a majestosa e iluminadíssima ponte repleta de luminárias laranjas e avermelhadas que se mesclavam com os faróis dos veículos ao crepúsculo do dia - o que criava um espetáculo à parte - foi nomeada após o grande amor do engenheiro que a projetou e guiou todo seu projeto. Uma romântica forma de eternizar sua paixão, tenho que concordar, e o motivo de tantos jovens casais terem-na visitado.

E foi neste exato cenário que começava, ou continuava - dependendo do ponto de vista -, minha história.

***

Antes de seguir, creio que deva me apresentar. Chamo-me Edgar Visco e passei uma boa parte dos meus bons anos trabalhando como detetive.

Nasci e fui criado em Circodema e, desde criança, sempre mostrei grande interesse por mistérios e enigmas. Adorava sentar-me junto ao meu pai para assistir aos grandes clássicos do cinema internacional; romances e dramas policiais eram os favoritos de meu velho e, com o tempo, também tornaram-se os meus.

Como muitos da época e a maioria dos meus amigos, tornei-me mais um entre os muitos jovens de cabelos compridos e camisas de flanela adeptos ao movimento grunge. Ah, os anos 1990... A música, o estilo rebelde... Não demorou muito até que formássemos uma banda, tocando Nirvana, Sonic Youth e tudo que a rádio nos apresentava. As primeiras cervejas, os primeiros cigarros, as primeiras paixões e traições. Você nunca esquece tais coisas.

Com o tempo, porém, a banda terminou. Não consigo me recordar muito bem o motivo, mas o tempo fez sua mágica. Claro que os hábitos, a bebida e o cigarro, acompanharam-me. Os anos 2000 chegaram e lá estava eu com um cigarro na boca, um vinho barato na mochila e os cabelos próximos aos ombros, mudando-me para Presinde, onde prestaria a Faculdade de Direito e Formação de Valor de Presinde, para o orgulho de meus pais.

Na faculdade, era um excelente aluno, academicamente falando; porém, talvez por ser difícil abandonar velhos costumes, envolvi-me com um grupo de caras que me apresentaram a cocaína, com a qual fiquei bastante próximo. No começo o uso se restringia aos encontros do grupo e festas, mas, como um adolescente que esconde os cigarros de sua mãe, tornou-se cada vez mais difícil esconder o hábito e, da mesma forma que um dia o adolescente é flagrado, fui surpreendido por um dos professores e "expulso" da consagrada instituição. Expulso entre aspas, porque, para não manchar o nome da tradicional escola, tive de assinar um documento, alegando desistência por motivos pessoais; e esta foi a história que emergiu para o público.

Costumo dizer que o destino é o desejo do universo, como se fosse a tinta usada para escrever nossa história. Alguns meses após voltar para Circodema, mantendo algumas inconvenientes verdades no passado e encobertas pela burocracia, comecei minha carreira policial.

Como você pode imaginar, esta mudança não ocorreu de uma hora para outra. Chegando à cidade, forcei-me a abandonar a cocaína. O pó já havia feito o suficiente por mim. Foram meses difíceis... Pensei, em alguns momentos, que não suportaria a abstinência. Era um caos tanto psicológico quanto físico; crises de pânico e fadiga, pesadelos que eu poderia jurar serem reais, insônia e uma constante mudança de humor. Tive muito medo de não voltar ao normal. Com o passar das semanas fui tornando-me íntimo de um grande aliado nessa luta: o álcool. Um vício mais sutil, assentado na normalidade de se poder compartilhar uma bebida em qualquer ocasião; uma espécie de droga com aceitação social.

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